A perseguição do sublime identifica-se com a função social do Arquitecto, porque o desejo de sublime não é invenção do Arquitecto
Enquanto categoria filosófica, o sublime tem uma idade avançada e significados que se foram transformando na história. Da raíz etimológica, sublimis (sub “up to”+ limis “limite”) depreende-se a condição comum de se referir a um cúmulo, ou seja, a uma forma radical da experiência estética. Na verdade, a vontade de compreendê-lo como tal acompanha-nos, pelo menos, desde os tempos da Grécia de Platão, ou da Roma Antiga de Pseudo-Longinus. Contudo, como nos explica o filósofo Byung-Chul Han [1], a separação entre a negatividade associada ao sublime e a positividade associada ao belo é bem mais recente. Nos tempos modernos essa distância estabeleceu-se com Burke e, a par deste, com Kant. Com o que na inexprimível violência e hostilidade da natureza, por exemplo, desperta em nós outras formas de sensibilidade associadas a um fascínio pelo que é incompreensível, pelo terror face ao que é desconhecido ou pelo assoberbamento perante o que é tão grande que simultaneamente reprime e eleva o sujeito na sua capacidade de evocar a ininteligibilidade do próprio infinito. Antes disso, o sublime era uma condição intrínseca à uma beleza que, por sua vez, estava muito menos associada em exclusivo à harmonia e ao prazer e muito mais ao choque. Por outras palavras, a negatividade do sublime e a positividade do belo andavam de mãos dadas.
Quando há uns anos reflectíamos a propósito do Arcaico e do Sublime, a nossa perspectiva teve por base um capítulo com o mesmo nome, de um livro escrito por Jacques Lucan. Para si, a condição do sublime entende-se sobretudo na relação que o sujeito estabelece com a “infinidade”, ou seja, com um sentimento associado à dificuldade (ver impossibilidade) em compreender plenamente a escala da Natureza. Portanto, a um experiência associada a uma certa condição de “grandeza”. Segundo escreveu, “o sublime não pode ser produzido feito de (pequenas) partes que se compõe ou montam. O sublime é produzido por um edifício que se dá a ver como um todo imediatamente apreensível, e que não é compreensível e interpretável segundo os critérios convencionais.” [2] Tomando-o de Burke, Lucan apresenta como exemplo concreto a estrutura do Stonehenge que, não contendo em si nada de propriamente admirável do ponto de vista compositivo ou ornamental, se torna sublime pelo tamanho das pedras e pela dificuldade em imaginar o modo como foram assembladas.
O que do nosso ponto de vista é particularmente interessante no seu texto é o conceito de Natureza não se limitar a algo que seja externo ao ser humano, mas ao que enquanto acontecimento natural ele próprio constrói: a cidade. O sublime não diz respeito apenas à imponência incólume dos Alpes, para tomar um exemplo clássico de literatura inglesa, mas diz hoje respeito ao próprio ecossistema complexo e conflituoso em que se tornou a cidade contemporânea. É por isso que algumas das principais referências que utiliza para se referir à condição sublime de certas arquitecturas contemporâneas são obras de OMA, o escritório de Koolhaas, um dos mais produtivos teóricos sobre a arquitectura da cidade contemporânea. E cujos projectos, para usar palavras suas, se debruçam sobre o que noutro tempo se chamava cidade e que hoje se caracteriza, entre outras coisas, pela sua “grandeza” e carácter “genérico”. [3]
Se como sugere Lucan o sublime é produto do que ultrapassa o nosso entendimento ou conhecimentos “familiares”, então, o acelerado e frequentemente caótico desenvolvimento que o espaço urbano atravessou nas últimas décadas, com a globalização da economia capitalista, conduziu seguramente a experiência estética da cidade para a sua esfera. Se o que são hoje centros preservados (e em grande medida desabitados) de algumas cidades europeias pertencem à convencional “ordem do belo”, sobre as suas periferias, que continuam a crescer e consomem hoje a grande maioria do espaço urbano, o máximo que poderá dizer-se é que pertencem à “ordem do sublime”. [4] E que como outros haviam já sugerido estão, em certa medida, para lá do “belo” e do “feio”. [5]
Também neste número da Ark, todos os projectos apresentados lidam, de uma forma ou de outra, com o incomensurável. Do Istituto Marchiondi Spagliardi, de Viganò, que propunha uma “escola de vida” no lugar de um reformatório juvenil para lidar com os traumas herdados da Guerra; à igreja de S. Ildefonso de Carlo De Carli, que deveria lidar com o mistério da fé num tempo em que ela começava a escassear; ou ao armazém de Molteni, com a árdua tarefa de materializar o inefável do trabalho automatizado, ainda mais devendo comunicar esse esforço à velocidade de uma auto-estrada. O carácter sistemático e seriado das suas arquitecturas é seguramente uma resposta. Parece querer subtrair-se ao domínio da composição rumo à escala quase infinita das cidades hoje. Ou como escreveram os Smithsons (não será coincidência na selecção uma inclinação para o Brutalismo), encontrar uma estratégia “para encarar uma sociedade de produção em massa, extraindo uma poesia rude das forças confusas e poderosas que nela estão em jogo”. [6] Não figurando neste número, não somos capazes de não pensar também na igreja de San Giovanni dell’Autostrada del Sole, projectada por Giovanni Michelucci.
No seu livro, Byung-Chul Han insiste que o “belo” e o “sublime” têm a mesma origem, para defender a urgência de desfazer a separação entre ambos. Sobre a “beleza”, Siza argumenta que a noção de Belo está sempre em crise e a “recusa de um belo consensual é o patamar da beleza autêntica (muito do que aparece no imediato como não belo ou rude)”. [7] Para nós, encarar a condição sublime da cidade contemporânea significa não fugir à responsabilidade de encarar todas as contradições que a caracterizam, ou à possibilidade de ver na arquitectura um instrumento para torná-las um pouco menos inteligíveis. Para que melhor se entenda o lugar e o papel que desempenhamos hoje no mundo. Para encarar a cidade contemporânea tal como ela existe e daí partir para poder transformá-la, do infinitamente pequeno, ao infinitamente grande.
Quanto ao belo, em arquitectura, talvez não se perca nada em relembrar que de um ponto de vista linguístico a distância entre o sublime e o subliminar é mais curta do que costumamos reconhecer.
- Byung-Chul Han, Saving Beauty (tr. Daniel Steuer), Cambridge: Polity Press, 2018
- Jacques Lucan, Précisions sur un état présent de l’architecture, Lausanne: Presses polytechniques et universitaires romandes, 2016, p.198
- A este propósito, veja-se: Rem Koolhaas, Delirious New York, Oxford University Press, 1978; Bruce Mau & Rem Koolhaas, SMLXL, New York: The Monacelli Press 1995; Rem Koolhaas, Junkspace, Roma: Quodlibet, 2006; ou Rem Koolhaas, Testi sulla (non più) città, Roma: Quodlibet, 2021
- Cf. Lucan, op.cit, p.198
- A este propósito, veja-se também: Denise Scott Brown, Roberto Venturi & Steven Izenour, Learning from Las Vegas, Cambridge: The MIT Press, 1977
- Alison & Peter Smithson, “The New Brutalism”, Architectural Design, 27, 1957, p.113
- Álvaro Siza, 01 textos, Porto: Civilização Editora, p.353