Maneirista, amaneirado, à maneira de
A nossa primeira visita a casas do ATELIERDACOSTA coincidiu com a descoberta dos “Ensaios sobre Arquitetura e Planeamento Urbano” de Hermann Czech. Embora não nos lembremos de alguma vez termos ouvido os primeiros a referir-se a este último, ambos parecem partilhar pontos de vista relevantes. “Quanto mais próxima a arquitetura permanecer da vida, mais complexa ela será; só pode ser ‘simples’ quando se afasta dela” [1], escreveu Czech. “O nosso tempo é o todo da história, tal como a conhecemos” [2], concluía, citando Josef Frank. Na verdade, esta parece ser uma maneira particularmente precisa de descrever o espírito da “Casa Crespo”, a primeira das casas que tivemos oportunidade de conhecer. Pelo exterior, esta casa não se destaca das casas suburbanas em seu redor, excepto pelo facto de as suas fachadas mostrarem um cuidado excepcional no que diz respeito à sua composição; pelo menos, para o olhar treinado de colegas arquitetos. Pelo contrário, uma vez no seu interior, é impossível permanecer indiferente ao requintado anacronismo do seu espaço central octogonal, ou às diagonais barrocas que se desdobram na sua fachada posterior. Surpreendentemente, Borromini encontrou o seu caminho para a periferia de uma cidade periférica, num país periférico. No entanto, como é característico do trabalho do atelier, essa referência não pretende permanecer uma citação literal, ou seja, para fazer à maneira de Borromini. É antes utilizada como um dispositivo formal encontrado e reciclado para organizar uma estrutura espacial complexa para uma casa suburbana que seria, de outra forma, banal.
Evidentemente, existe sempre o risco de que estes jogos formais sejam lidos como truques fúteis, concebidos por um arquiteto excessivamente amaneirado. Ou então, que nãos sejam sequer “lidos”. O que é extraordinário nestes gestos, porém, é que eles não são de forma alguma gratuitos. Eles contribuem para enquadrar e estabelecer uma sucessão de espaços definidos pelas suas qualidades, ao invés de serem definidos pelas suas funções. Com pés-direitos baixos e pés-direitos altos, salas largas ou estreitas, vistas sobre o horizonte, sobre pátios interiores ou simplesmente sobre outros interiores: há sempre uma passagem surpreendente prestes a ser descoberta. A cozinha está simultaneamente na sala de jantar e à parte. A sala de estar pode ser a sala de jantar ou vice-versa. Os quartos mantêm a sua intimidade através de vestíbulos secretos, que se abrem contraditoriamente para as áreas mais “públicas”. A casa possui uma arquitetura que não é composta apenas por quartos, nem é exatamente um plan libre. É uma síntese de ambos: uma espécie de raumplan, mas não exactamente. É sobretudo uma grelha estrutural, dentro da qual vão sendo organizadas as suas disrupções. Em qualquer caso, é uma multiplicação engenhosa de possibilidades ou aquilo a que Czech descreveu como sendo a atitude do maneirismo: “uma postura de intelectualidade, de consciência; e ao mesmo tempo, um sentido do irregular e do absurdo, que se desvia dos preceitos pré-estabelecidos”. [3]
Infelizmente, quando visitámos a casa, o que parecia ser a primeira cena de uma peça de “O Pobre Homem Rico”, de Adolf Loos, estava a decorrer. Uma equipa de decoradores estava a mobilar a casa de uma ponta à outra, no mais recente estilo neo-burguês de tendência da última novela. Definindo funções precisas e neutralizando assim qualquer sentido de potencial ou de possibilidade. Como escreveu Loos, “a única coisa que sobrava para [o cliente] era aprender a andar no seu próprio corpo morto”. [4]
O vernacular e o erudito são o mesmo e um só
Com base em “Templo e Democracia” de Peschken, Philippe Villien construiu uma ponte teórica entre a arquitetura vernacular dos espigueiros de granito e a arquitetura erudita dos templos dóricos. O seu objetivo era mostrar que o salto entre os dois poderia ter sido feito por transcrição, mais do que por ruptura ou inovação. [5] De acordo com esta hipótese, os triglifos gregos corresponderiam aos vestígios dos painéis de ventilação dos espigueiros. Por sua vez, tanto os capitéis coríntios como os jónicos seriam herdeiros formais desses dispositivos formais ecológicos que protegiam as colheitas dos insectos trepadores, como são as saliências que encimam as colunas dos espigueiros portugueses. Para não mencionar, claro está, a tradução entre literal entre a forma dos frontões clássicos e a simples necessidade de drenar a água da chuva das coberturas.
Esta perspetiva é particularmente interessante, pois revela um potencial nexo entre a utilidade e o efeito, entre a razão funcionalista e a simples fruição ornamental. Uma compreensão semelhante dessa afinidade está também patente, por exemplo, no trabalho de Alison & Peter Smithson que foi ilustrado em “Climate Register”. [6] Um pequeno livro que apresenta o seu trabalho com ênfase no impacto que os dispositivos climáticos tiveram tanto na racionalidade técnica quanto na gramática arquitetónica das suas propostas. Um olhar atento sobre as fachadas do ATELIERDACOSTA revela o mesmo tipo de sensibilidade. Talvez o caso em que esta tensão seja mais ilustrativa é a cornija de betão (exageradamente grande) da “Casa Rates”, construída sobre uma parede ordinária de ardósia. As cornijas são um exemplo histórico bastante claro desta superposição entre utilidade e efeito. Neste caso, um elemento de betão particularmente sofisticado, que à primeira vista poderia ter vindo de um mosteiro demolido nas proximidades (como é o caso de um capitel de igreja românica que lá existe), assenta no topo de uma construção bastante rudimentar. O facto de o betão encaixar nas pedras angulares existentes enfatiza essa ambiguidade. O mesmo se aplica à irregularidade geométrica da sua planta, que nos deixa a questionar sobre o que já existia e o que foi realmente acrescentado à casa existente. De qualquer modo, seja um templo ou uma modesta casa no campo, o problema mundano de evitar que a água corra pela fachada continua a ser um excelente pretexto para coroar um edifício.
Este desejo de manipular, exagerar, ou simplesmente compor uma fachada a partir dessa necessidade de elementos banais e utilitários (que na história recente foram frequentemente considerados indesejáveis pelos arquitetos) não é exclusivo da “Casa Rates”. Veja-se, por exemplo, o “Lote 7”, onde um simples alto-relevo no banal sistema ETICS que isola a casa desenha um friso em torno da mesma, enfatizando-se sobre as janelas para esconder o seu sistema de sombreamento. Um friso que é coroado por um expressivo chapim de betão que serve para gerir, mais uma vez, e de modo mais eficaz, o escorrimento das águas da chuva. Ou ainda, a importância que têm as persianas aplicadas sobre as fachadas de madeira da “Casa Gemeses”, que o clima tem envelhecido e misturado com a fundação de betão num cinza suave unificado, interrompido apenas pelos mais belos caixilhos cor-de-laranja. Ou ainda, os pórticos de betão projetados, que actuam simultanemante como brise-soleils e suporte estrutural para os toldos que regulam a exposição da “Casa Artur” à luz solar. Através destas operações, o meio cristaliza-se em matéria e a arquitetura revela a sua relação ancestral com uma compreensão mais profunda da palavra ecologia
Aprender a pensar com quem sabe fazer
Um dos mal-entendidos sobre os quais a arquitetura se tem sustentado desde há séculos, em particular desde o Renascimento clássico, tem a ver com a promoção de uma estrita divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho manual no estaleiro de obra; um processo de abstração que só parece ter-se acelerado desde o advento do capitalismo. Segundo essa lógica [7] , existem aqueles responsáveis pelo desenho e aqueles que executam o que os primeiros imaginaram: por mais absurdas que essas imagens possam ser do ponto de vista de quem produz. Contudo, a nossa experiência prática ensinou-nos que o oposto é verdade e que quase todas as pessoas envolvidas no processo de construção usam desenhos elementares como uma ferramenta para pensar. Ao contrário das abelhas ou das aranhas, os trabalhadores da construção planeiam antecipadamente na sua mente, o que, de acordo com a conhecida formulação de Marx, significa que eles não estão assim tão distantes dos arquitetos. Muitas vezes, a principal diferença é que a abordagem dos primeiros ao desenho é muitas vezes mais racional e sustentada na realidade material das coisas do que a dos segundos.
Outra dicotomia que limita o progresso do pensamento arquitectural é a ideia socialmente construída segundo a qual existe uma alta cultura, erudita, à qual a arquitetura pertenceria, por oposição a uma cultura popular, e inferior, à qual todas as outras formas menores de construção devem ser confinada. Pelo contrário, a posição paradoxal em que nossa geração se encontra é que a arquitetura parece finalmente ter alcançado as classes que dela foram excluídas até há relativamente pouco tempo. Tanto do lado de quem pratica como de quem encomenda, a arquitetura já não diz respeito apenas às classes com mais capital (seja económico ou cultural), nem às mais desfavorecidas, para as quais historicamente o idealismo filantrópico ou utópico das primeiras tem sido direccionado. Isto, como é óbvio, não significa que toda as pessoas que pertencem a essas outras classes intermediárias se tenham passado a interesse pela arquitetura. Em muitos casos, a arquitectura é ainda entendida como nada mais do que um procedimento burocrático a ser legalmente cumprido, ou seja, algo inconveniente por decreto. Assim sendo, a capacidade de levar a arquitectura a cada canto de uma cidade que se parece ter tornado numa periferia infinita depende da habilidade de construir pontes intelectuais. O oposto significa adoptar uma atitude condescendente ou paternalista, reduzindo as e os clientes a um bando de pessoas ignorantes.
Como já argumentamos anteriormente em relação ao trabalho dos fala, acreditamos que estas periferias têm revelado o espírito inventivo dos seus habitantes desde há décadas, para quem estiver disposto a prestar atenção. [8] Os benefícios advêm de tornar o projecto de arquitectura um processo intelectual de aprendizagem para ambas as partes. Um exemplo perfeito do que estamos a tentar ilustrar é a “Casa César”. Partindo de um preconceito do cliente — “construir uma casa de pedra com telhado inclinado” — o Atelier foi obrigado a aprender a pertinência econômica e ecológica desse tipo de construção, ainda hoje, desde que considerado a partir da perspectiva material e subjetiva de sua produção local. Do exterior, é quase impossível determinar em que época a “Casa César” foi concebida. É até dúbio se uma equipa de arquitectura esteve realmente envolvida no seu desenho ou na sua construção. Cada elemento parece revelar a sensibilidade de uma arquitetura neo-popular, como por exemplo a maneira como a água da chuva é afastada da fachada com recurso a um “beirado à portuguesa”. No entanto, assim que examinamos mais de perto as plantas de piso, descobrimos uma vez mais a mesma ambição intelectual e a mesma confiança na complexidade espacial da arquitetura barroca.
Em 1960, ainda antes de escrever “A Arquitetura da Cidade”, Aldo Rossi já estava preocupado com “o problema da periferia” [9], uma vez que considerava que esta era “o futuro da cidade” [10]. Se olharmos para a paisagem portuguesa, será fácil compreender que ele não estava errado a esse propósito. E ainda assim, dentro do campo disciplinar da arquitetura, e especialmente do ponto de vista prático, pouco foi produzido desde então para entender as suas estruturas e procurar transformá-las, nem que seja apenas nas suas implicações mais básicas. Na nossa opinião, o ATELIERDACOSTA já deu contributos significativos. Afinal de contas, até mesmo a periferia precisa dos seus templos. E a esse respeito, o ATELIERDACOSTA parece ter o que é preciso.
- Herman Czech. “A Self-critique of Modernism” (1995), in Essays on Architecture and City Planning. Zurich: Park Books, 2019, p.218.
- Ibid., p. 221.
- Herman Czech. “Mannerism and Participation” (1977), in Essays on Architecture and City Planning. Park Books, 2019, p.123.
- Adolf Loos, “Poor Rich Man” (1900), in Creating your home with style. Metroverlag, 2013, p.83.
- Philippe Villien, “Le dorique bien tempéré”, in Marnes, vol.3, May 2014, pp.328-341.
- Peter Salter & Peter Smithson, Climate Register: four works by Alison & Peter Smithson, Architectural Association, 1995.
- Apropos, cf. Pier Vittorio Aureli, Architecture and Abstraction, The MIT Press, 2023.
- João Paupério & Maria Rebelo, “Breves notas para uma teoria da prática do ordinário”, Punkto, #38, May 2023
- Aldo Rossi, “Il problema della periferia nella città moderna”, Scritti scelti sull’architettura e la città, Clip, 1957, p.112
- Aldo Rossi, “La città e la periferia”, Ibid, p.158