Se existe um sentido do real, deverá também existir um sentido do possível.
Em 1994, partindo de um aforismo de Mies van der Rohe, Josep Quetglas advertia para a necessidade de um novo ensaio sobre as formas do habitar, enquanto reafirmava que a casa dos seus dias não existia ainda. Reconhecendo as exigências ligadas às transformações dos modos de vida e as respectivas consequências no desenho da casa, avisava que esta casa não poderia cumprir-se a não ser através de um esforço capaz de “anular a vida fictícia – a vida submetida à avaliação, ao julgamento do outro – assim como ao lugar da sua representação.”[1] Hoje, a casa do nosso tempo continua por inventar; fazemos parte de uma geração que vai crescendo entre a superabundância do supérfluo e a penúria do necessário e cuja emancipação só poderá passar por uma atordoante paragem no ser. Por esse motivo, e tomando como ponto de partida uma das Ideias de Giorgio Agamben, propomo-nos através deste ensaio hipotetizar sobre esse estímulo, procurando reencontrar os ritmos da realidade para desvelar princípios possíveis para a fundação dessa casa: unidade elementar para a produção do território (e) da cidade.
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Em “Ideia da infância” [2] , o filósofo enuncia a hipótese de um Homem cuja evolução não terá propriamente tido lugar a partir de indivíduos adultos e da sua experiência, mas antes das suas crianças, reconhecendo nessa possibilidade a chave de compreensão da transformação humana. Segundo escreve, a imaturidade omnipotente desta criança – distraída, ignorante e não especializada – ter-lhe-á permitido escapar à sua inscrição genética, presa à perpétua repetição dos gestos dos seus antecessores, transcendendo um destino específico e codificado. Ao reconstruir o mundo a partir de si, tornando-se capaz de nomear as coisas na sua língua, a criança ter-se-ia autorizado a estabelecer a distância necessária de uma interacção predeterminada com as coisas, caminhando em direcção à construção de um meio múltiplo e indeterminado. No fundo, ao aprender a ler o mundo à sua volta, graças à linguagem, apenas a criança teria sido capaz de se concentrar à escuta do ser.
Algures dentro de nós, acrescenta, essa criança continua hoje o seu jogo. Na verdade, antes que chegue a escola, as crianças, herdeiras dessa distração originária, conservam uma aptidão notável para ler, para (se) apropriar, ou por outras palavras, para (se) projectar (n)um espaço. O (re)conhecimento da sua habitação no mundo passa inevitavelmente pelas inesgotáveis e inefáveis possibilidades permitidas pelo jogo que operam com o seu meio, numa actividade poética cuja essência é, escreveu Walter Benjamin, “não um fazer-de-conta-que, mas um fazer-sempre-de-novo” [3] , numa verdadeira forma de autonomia.
No livro Homo Ludens, John Huizinga sublinha algumas das características fundamentais do jogo que sintetizam o nosso interesse pelo seu potencial: (1) o jogo não responde a interesses materialistas nem a necessidades biológicas; (2) o jogo estabelece uma forma de ordem; (3) o jogo representa uma forma de liberdade e, (4) o jogo ultrapassa a vida ordinária, operando dentro de fronteiras espácio-temporais que lhe são próprias [4]. Na verdade, ao convocarmos as virtudes da infância, enquanto arquitectos, não o fazemos para o discutir de um ponto de vista estritamente sociológico, sobre a sua natureza performativa ou didática enquanto tal. Fazêmo-lo porque este subentende uma necessidade espacial para se produzir, um ambiente simultaneamente livre e estruturado que disponha as condições nas quais aquele-que-joga poderá praticar a sua criatividade espacial, provocando essa paragem no ser.
- Josep Quetglas, “Habitar”, in Circo, n.º15, Madrid, 1994, p.8.
- Giorgio Agamben, Ideia da Prosa [Idea della Prosa, 1985], Edições Cotovia, Lisboa, 1999.
- Walter Benjamin, “O Brinquedo e o Jogo” [“Spielzeug und Spielen”, 1928], Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d’Água, Lisboa, 2012, p. 147.
- Johan Huizinga, Homo Ludens. A study of the play-element in culture, Routledge & Kegan Paul, London, 1944, p.8-13.
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Se essa criança existe, é porque existem os seus pais. Mas as mãos dos seus pais, as mesmas que lhes permitiram fazer-se humanos e inventar a cidade, permanecem ainda hoje amaldiçoadas pela sua servidão ao trabalho. Ou então, quando o inacesso a este as acaba por libertar, deparam-se incapazes de alcançar até os meios necessários para a sua subsistência, acabando presas a uma nova maldição (acentuada pela depressão de não poder ser amaldiçoado). Nesse sentido, a reflexão sobre o espaço do lúdico não se empreende aqui como forma de hedonismo ou diletância, mas como modo de criticar e repensar os modos da nossa existência utilitária, (re)imaginando a arquitectura possível para uma outra forma de humanidade. A arquitectura para um homo inutilis [5], capaz de contradizer uma vida cansada pelo seu trabalho, devota ao consumo e consumida pelo seu próprio espectáculo. Uma humanidade para quem o trabalho não será mais uma forma de domínio ou de exploração, de virtude e de acumulação, mas de participação voluntária e consciente na construção de um espaço feito por todos e para todos, por um e para cada um.
Em 1932, Bertrand Russel desvelava já essa hipótese no elogio que tecera então ao ócio [6] . O autor propunha uma comunidade onde todos trabalhassem apenas quatro horas por dia, produzindo “os artigos de primeira necessidade e as comodidades elementares da vida”, libertando o resto do seu dia à vocação da sua singularidade. Os seus habitantes não estariam limitados às funções prosaicas e maquinais que lhes garantiam a sobrevivência, mas seriam capazes de as suplantar por via de uma actividade poética, reestabelecendo controlo sobre o seu próprio tempo e desenvolvendo qualidades próprias para participar numa produção comum do espaço. Essa emancipação, no sentido que lhe atribui Rancière, estabeleceria uma redistribuição do sensível indispensável à igualdade de inteligências dos seus cidadãos, reestruturando as relações entre (as capacidades de) ver e falar, pensar e fazer, ou por outras palavras, reconciliando a vida activa com a vida contemplativa.
Hoje, para lá da tomada de comando da mecanização, e em pleno advento da automação e das inteligências artificiais, a verdade dessa realidade parece-nos cada vez mais concretizável. O nosso exercício, enquanto arquitectos, passará então por imaginar a casa dessa comunidade, isto é, fazê-la existir; e para tal, tomaremos como referência duas casas que, dispondo da não-latência que caracteriza essa infância, estabelecem uma geografia deliberadamente inútil, uma disposição de lugares onde os seus habitantes podem estar-sós e estar-juntos, improvisar, mover-se, sentir e pensar sem constrangimentos.
É o caso da casa Latapie, projectada pelo atelier de Anne Lacaton e Jean-Phillipe Vassal em 1992. A dupla de arquitectos foi abordada por um casal habituado a viajar pelo sul de Espanha, transportando consigo o essencial compactado numa caravana, e instalando uma mesa diante do mar para construir da paisagem a sua casa. [7] Conscientes da potência dessa experiência estética, Lacaton e Vassal reproduziram a simplicidade desse dispositivo dialógico nos subúrbios de Bordeaux. De um lado, evocando a utilidade da caravana, uma machine à habiter que, seja devido às suas infraestruturas, à materialidade doméstica ou à compartimentação dos seus quartos, guarda consigo a utilidade de uma casa convencional. Do outro, a abstracção de uma estufa que evoca a amigabilidade do mar, uma boîte à miracles que dobra a superfície da casa para dar espaço à inutilidade.
Para além de permitir aos seus habitantes controlar o clima da casa, este outro espaço dilui a formalidade de uma sala-de-estar tradicional, caracterizando-se pela resiliência à multiplicidade de eventos-em-movimento que potencia: isto é, não apenas ao jardim exótico ideado pelos arquitectos, mas à expectativa de um encontro festivo ou conspirativo entre amigos, de um jogo de crianças improvisado, da pintura de um quadro, ou da brisa de verão que convida a contemplar as plantas e a ler um livro. Uma heterotopia, para tomar um termo de Foucault, – à vez próxima e longínqua, aberta e impenetrável – que anima na casa situações inesperadas, distanciando-a do contexto forçado em que se instala.
Assim, sem pretensões formalistas e despida de formalidades, a casa incita uma habitação mais intensa por parte dos seus habitantes. Contrariamente à lógica imobiliária da casa-comodidade, onde os compartimentos são amplificados para dar espaço ao impulso consumista e à mise-en-scène da sua representatividade, nesta casa-instrumento, a autonomia do jogo é o que dá sentido à sua generosidade. O orçamento apertado não se impõe como obstáculo à Arquitecura, mas antes como pretexto para a sua emancipação face aos constrangimentos que a economia produz nos elementos da sua arquitectura. Fabrica-se espaço na justeza do gesto: reduzido ao essencial, mas nunca ao utilitário. E, finalmente, a pobreza dos seus materiais – escolhidos pelo potencial poético do seu valor de uso –, o pragmatismo das formas e a simplicidade das técnicas construtivas operam enquanto estímulo para uma apropriação mais livre.
Anne Lacaton & Jean-Phillipe Vassal construíram dessa forma o protótipo de uma arquitectura pensada para se multiplicar e reorganizar em formas de habitação colectiva; um outro modo de fazer-cidade, alternativo a um urbanismo que perdeu a sua capacidade de planear face à liquidez e à (des)ordens do capitalismo global, partindo da transformação – tão frugal quanto radical – que surge ao acrescentar uma camada ao existente, e ao desvelar a verdade que existe na inutilidade destes novos espaços. Na hospitalidade que existe não só na opacidade, mas na translucidez e na transparência dos seus limites; na simultânea continuação e autonomia da cidade, ou por outras palavras, na abertura e na margem de manobra feitas possíveis numa casa feita de umbrais.
Décadas antes, Rudolph e Pauline Schindler materializaram, na(s) casa(s) que projectaram para viver com a família Chace, uma redistribuição do sensível igualmente sinalizadora de possíveis formas de habitar para esse homem inútil. Num manifesto circular entre o próprio e o comum, o casal utilizou o seu desenho para reformular os mecanismos debilitantes da estrutura familiar tradicional, substituindo a sua hierarquia patriarcal por uma apropriação do espaço radicalmente igualitária. Contrariamente ao funcionalismo positivista que pautava a sua época, Schindler arrumou as utilidades indispensáveis ao quotidiano em núcleos partilhados pelos seus habitantes, libertando o resto da parcela para uma enfilade de quartos, interiores e exteriores, de atmosferas múltiplas e carácter preciso, mas sem função determinada. O leitmotiv do projecto passaria pela construção de quatro células equivalentes: uma para cada adulto, onde estes pudessem expressar, no exercício do corpo e da mente, no desenvolvimento autónomo dos seus hábitos e interesses, uma presença própria no tempo e no espaço. Estúdios onde se procurava contornar a separação entre ócio e trabalho, onde a vida doméstica se poderia confundir com a vida oficinal [8], desenvolvendo-se o afecto pelo mundo e a dedicação para o saber, para que dessa intersecção resultasse o que há de singular em cada habitante.
Isto não equivalerá a insinuar que cada habitante vivesse em retiro, numa forma de ermitério. Pelo contrário, a disposição em gancho dos volumes dos quartos delimitava espaços exteriores de convívio, para os quais esta espécie de abrigos (quase primitivos) se abririam à distância de um passo. Pontos de encontro e actividades em conjunto, não só entre os seus habitantes, como com os seus convidados. Na verdade, com o passar do tempo, para lá da vida pessoal e familiar, a casa tornou-se um centro para a cultura local, para concertos e leituras, festas e performances, e, inclusive, para encontros políticos. Simultaneamente centrípeto e centrifugo, o seu espaço ir-se-ia reconstruindo na reconfiguração das suas fronteiras; na dissolução dos muros entre a esfera do privado e a esfera do público; na substituição destes por pontes entre a escala do singular e a escala do comum.
- O Homo Inutilis é o humano por-vir, aquele que foi libertado do utilitarismo do trabalho, e que encontra nesse tempo liberado a possibilidade de reencontrar a via da sua própria humanidade. Neste sentido, inutilidade não se entende por algo que não é útil mas, pelo contrário, que ultrapassando a sua utilidade, se torna ainda mais fundamental.
- cf. Bertrand Russel, “In praise of idleness”, Harper’s magazine, New-York, Outubro 1932.
- Jean-Phillipe Vassal, “Everyday pleasures – a conversation with Anne Lacaton and Jean Philippe Vassal”, El Croquis, nº 177/178, Madrid : El Croquis Editorial, 2015, p. 17.
- Pauline Schindler era compositora de música, Rudolph Schindler arquitecto, Clyde Chace era pintor e Marian Chace ceramista.
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Actualmente, não existe ainda essa comunidade. Existe, no entanto, a possibilidade de um outro modo de se relacionar com o mundo e de fazer do mundo (a partir d)a nossa casa. Para lá dos quartos mínimos, cujo único propósito pareça ser o de restaurar a produtividade do trabalhador para o dia seguinte, ou das salas que se organizam em torno da televisão, transformando o trabalhador em consumidor, para que este se deixe enfeitiçar.
A home is not a house, declarou Reyner Banham, insinuando que se nos limitarmos a (cor)responder ao já conhecido, não poderemos expressar outra coisa senão aquilo que já conhecemos. Não bastará abrir e circunscrever espaço e esperar que “ele tenha uma auto-animação espontânea, como se ele fosse garantir uma prática da liberdade por decreto. É preciso, na materialidade de um lugar, o influxo de um gesto de convocação, de uma disposição favorável às aberturas e trocas feitas corpo, olhar e gesto: é preciso que nele algo convoque à vinda, algo que se enuncie e anuncie sem ordenar, uma visibilidade que não ofusque” [9], permitindo reconstruções múltiplas e subjectivas dos seus sentidos.
No fundo, o que estas casas que acabamos de descrever têm em comum é o sentido emancipatório do seu inacabamento, o apelo de uma outra partilha do sensível, incentivada pela inutilidade e pela abertura des-programada das suas formas. Convirá, no entanto, compreender que este inacabamento nada tem que ver com a incompletude que materializa a escassez provocada pelo zeitgeist neoliberal da nossa época, e mascarada pela flexibilidade economicista de obras como a Quinta Monroy, do estúdio Elemental, que fazem dos seus habitantes pequenos empreendedores-de-si-mesmos e construtores a crédito do seu próprio investimento.
Pelo contrário, os lugares destas casas – os seus chãos, os seus muros e os seus tectos – estão completos do ponto de vista arquitectónico. Estão inacabadas no sentido em que exploram a potência da sua habitação para escapar às estruturas domésticas estabelecidas, isto é, à perpétua reprodução dos meios e dos modos de produção do espaço, assim como às respectivas condições sociais, políticas, culturais, económicas e ecológicas que esses implicam. Estão inacabadas no sentido em que armam-se da autonomia artística do projecto para recortar um vazio no sistema ideológico dominante em que se instalam, de tal forma que, tal qual Bartleby, os seus habitantes possam preferir não se conformar.
Se a partilha do sensível, para recuperar a formulação de Rancière, consiste no sistema de evidências sensíveis que desvela, em simultâneo, a existência de um espaço comum e dos recortes que (e como) definem os lugares partilhados e as suas partes exclusivas – “o visível e o invisível, a palavra e o ruído que determinam à vez o lugar e a questão da política como experiência”[10] –, então o que estas casas propõem é precisamente uma reorganização da repartição do espaço e do tempo, do trabalho e do ócio, capaz de reconfigurar a paisagem do perceptível e do pensável. Modificando desse modo o território do possível, a distribuição das capacidades e das incapacidades de cada um para participar na construção de uma casa-mundo, que pertença a todos nós.
Finalmente, estas casas servem-nos enquanto referências para uma mudança de paradigma: marcos de um outro futuro possível, sinais de uma revolução estética que antecede, timidamente, uma revolução social. Da casa não como bastião da propriedade privada, mas enquanto ponto de partida para novas formas de comunidade; ou, para concluir com palavras de Quetglas, da casa que, desaparecida como instituição, enquanto lugar oposto aos outros lugares – na medida em que o ócio deixará de ser a aparente oposição do trabalho, e o privado deixará de ser a aparente oposição do colectivo – estará então por todo o lado. Transpondo os seus valores para o resto da cidade, como fez Lina ao fazer de uma fábrica um ‘centro de lazer’, em Pompéia.
É que “este apelo da humanidade em relação ao soma infantil tem um nome: o pensamento, ou seja, a política” [11]; e a Arquitectura, enquanto dispositivo que enquadra o seu espaço, capaz de capturar, interceptar, estimular e animar os gestos, os comportamentos e os discursos, poderá desenrolar um papel central na transformação desse fazer-de-conta-que instalado no fazer-sempre-de-novo, inconformado.
- Rodrigo Silva, “Elegia do comum”, A República por Vir: Arte, Política e Pensamento para o Século XXI, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2011, p.25.
- Jacques Rancière, Le partage du sensible: esthétique et politique, La fabrique, Paris, 2000, p.12-14.
- Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, op.cit, p.95.