Tornavento
Há alguém que considerem um mestre, uma figura de referência da qual se sintam de alguma forma herdeiros?
atelier local
Antes de mais, importa esclarecer que temos um problema com a própria noção de mestres ou de heróis em qualquer domínio do pensamento. A arquitetura não é excepção. É fácil entender por que alguém pode sentir a necessidade de procurar uma espécie de figura paternal, particularmente numa área onde a própria natureza do conhecimento ou a simples distinção entre um bom e um mau projeto são, por vezes, tão difíceis de compreender e descrever. Como Denise Scott-Brown escreveu, em tom crítico, “os arquitetos, ao lidarem com as intangibilidades do projecto, escolhem um guru cujo trabalho lhes dê ajuda pessoal em áreas onde há tão poucas regras a seguir.” Na nossa perspetiva, ter mestres significa estar preso desde o início, sentindo-se demasiado seguro para seguir um caminho previamente traçado em vez de questionarmos a nossa própria perspetiva. Como de facto esses “heróis” fizeram, de uma forma ou de outra, com as suas próprias figuras de referência.
Evidentemente, isto não significa que não olhemos para o trabalho de outros. Pelo contrário, somos fascinados pela arquitetura e estamos sempre ansiosos por descobrir novas obras e projectos, sejam antigos ou de autores contemporâneos. Para nós, estudar é a forma de enriquecer a nossa caixa de ferramentas conceptual. Isso permite-nos posicionar não só dentro da disciplina, mas também em relação ao mundo, concebendo as nossas propostas como contributos para ampliar a primeira e transformar o último. Mesmo que seja apenas de um modo relativamente cínico e impotente. No nosso caso, isso significa estudar não só arquitetura, como também filosofia, política, sociologia… Tendemos a olhar para a arquitetura não apenas do ponto de vista estético, mas também ético. É por isso que também escrevemos.
Posto isto, aprendemos muito com os Smithsons, com Venturi & Scott-Brown, Renaudie & Gailhoustet, Lacaton & Vassal, Lina Bo Bardi, Baukunst e muitos outros que entendemos ilustrarem um compromisso em transformar a arte de habitar. Começando pelo que já existia e envolvendo-o através de uma política própria da estética, da sua singularidade. Para além desses, em particular quando precisamos de abordar questões específicas de linguagem ou da composição nos nossos projetos, olhamos obviamente para o trabalho de muitos outros… tanto para as suas palavras (ideias) como para as suas imagens (gestos). Também prestamos atenção à cidade em todas as suas formas, aos gestos mais ordinários e anónimos da arquitetura… evitando quaisquer preconceitos. Digamos que o nosso mestre é o próprio mundo, que obviamente abrange toda a história e teorias da arquitetura. Aquilo que já está lá é demasiado para ser ignorado. É nosso dever ampliá-lo e seria uma estupidez não aproveitá-lo.
Tornavento
Que linha de pensamento alimenta a filosofia do vosso estúdio e a imaginação dos vossos projetos?
atelier local
É muito difícil para nós destacar uma única linha de pensamento, já que somos ainda uma prática muito jovem, com uma experiência limitada. Em qualquer caso, não estipulámos uma filosofia ou um método de antemão, embora Hermann Czech pareça estar certo quando escreveu que “aqueles que não têm experiência devem começar pela metodologia”. Se a arquitetura é uma forma de linguagem, cada imagem de cada projeto que conhecemos constitui uma espécie de substrato para a imaginação, a matéria-prima a ser processada de acordo com cada situação. Nesse sentido, acreditamos que a consistência do nosso pensamento reside na capacidade de saber as razões pelas quais escolhemos uma imagem em detrimento de outra. Ou seja, reside na capacidade de recorrer conscientemente à memória como método. Claro que esse método só pode ser o resultado da própria experiência. Contudo, a experiência consolida um método que nesse processo dissolve a necessidade de si enquanto tal, dando lugar à intuição.
No nosso caso, este imbróglio foi resolvido ao colocar uma certa dose de confiança no próprio processo. Isto é, na capacidade de observar e aprender com cada situação e com aqueles envolvidos nela, a fim de extrair daí os nossos próprios princípios teóricos. A atenção ao “encontrado” [found] e ao “como encontrado” [as found], tal como formulado pelos Smithsons, é central. No entanto, mesmo que partamos do que já existe e desprezemos qualquer forma de tabula rasa, a nossa relação com os lugares também não pode ser considerada estritamente contextualista. Olhamos para os lugares não só pelo que são, mas pelo que têm o potencial de vir a ser. Preservamos tudo o que podemos, mas não nos consideramos de modo algum conservadores, muito pelo contrário. Para nós, o local representa um emaranhado complexo de ecologias materiais e subjetivas à nossa disposição, ready-mades prontos a serem transformados no seu próprio significado. Assim, como parte de cada lugar, deve ser incluído o conhecimento daqueles que o habitam ou daqueles que refletem sobre ele.
O que já existe não é um impedimento ou uma restrição, uma fatalidade a ser reproduzida ou ignorado, mas sim uma forma de evitar o embaraço de uma tela em branco e de alcançar assim uma maior liberdade para a nossa própria subjetividade. Talvez, se realmente precisarmos de formular uma posição filosófica que oriente o nosso trabalho, ela teria de ser desdobrada em dois pontos. Por um lado, admitimos sempre que sabemos menos do que podemos aprender com as situações em que nos encontramos: nunca estamos sozinhos, estamos sempre com outras. Por outro lado, consideramos fazer/não fazer, construir/não construir polos igualmente importantes de qualquer proposta arquitectónica. Não somos minimalistas, mas preferimos gestos mínimos, assim como uma quantidade mínima de gestos.
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Quais são as principais etapas do processo criativo de um projecto?
atelier local
Como dissemos, ainda não temos um método consolidado. E provavelmente, nem sequer pretendemos vir a ter um. Talvez devêssemos reforçar esta ideia de que a primeira etapa do nosso processo criativo começa com todos os projectos que estudámos anteriormente. Depois, ouvimos, observamos… e discutimos muito entre nós, ainda antes de começar a desenhar qualquer coisa. Começamos por determinar o que é importante para nós manter e o que não é. Na verdade, algo que é comum na nossa forma de trabalhar é fazermos nós próprios o levantamento do local onde vamos intervir. Não tanto porque achamos que encontraremos a solução lá, mas porque esse lugar actua como um gatilho mnemónico para nos lembrarmos de muitos outros lugares. O projecto pode ser encontrado no local apenas porque nós estamos lá, e as respostas aos problemas que ele levanta podem muito bem ser encontradas em muitos outros lugares que estudámos e que, por algum motivo, voltam naquele momento à nossa mente. Então, começamos a juntar esses materiais fragmentados (por vezes até contraditórios) que recolhemos: os que encontramos no local e os que já trazíamos na nossa memória.
Isso é válido principalmente para as etapas conceptuais, ou seja, para estabelecer os principais temas de cada projeto, assim como as guias que orientam a nossa trajetória. Depois disso, em termos de definição construtiva e técnica, gostamos de manter o projecto o mais aberto possível, até ao momento em que a construção realmente começa. Aí, o nosso projecto evolui através da discussão com os trabalhadores e artesãos que nos confrontam com o seu próprio conhecimento. Às vezes, isso tem até implicações fundamentais para a materialização de ideias que já tínhamos estabelecido anteriormente. É por isso que evitamos sempre apresentar imagens 3D ou versões renderizadas das nossas propostas aos clientes. Isso é estratégico. Em vez disso, usamos desenhos e modelos abstratos bastante simples, o que nos permite manter a maior margem de manobra pelo maior tempo possível. Temos tido a sorte de ter clientes que aceitam isso. De qualquer forma, preferimos sempre fazer o mínimo possível, pois não acreditamos necessariamente na virtude da quantidade por si só.
Tornavento
De que modo esses lugares e edifícios previamente experienciados participam no projecto criativo?
atelier local
Acreditamos já ter abordado esta questão anteriormente. No entanto, pode ser importante acrescentar uma ou duas coisas. Primeiro, importa dizer que para nós não é indispensável ter experienciado esses lugares e edifícios pessoalmente. Diríamos que somos locais também porque não viajámos muito e não sentimos essa necessidade. Concordamos plenamente com algo que ouvimos de Josep Quetglas numa conferência, há alguns anos. Como arquitetos, somos treinados para entender um lugar ou um edifício através de imagens e de desenhos: plantas, cortes e alçados. A imaginação encarrega-se do resto. De qualquer forma, ser literário é muitas vezes mais produtivo do que ser literal.
Em segundo lugar, devemos esclarecer que a nossa relação com outros casos e os seus contextos não é estritamente tipológica nem de veneração por uma espécie de integridade intocável. Não sentimos a continuidade como um fardo, mas cultivamos uma relação muito mais topológica com o conhecimento que vamos acumulando. Dos nossos dias em Baukunst trouxemos duas ideias importantes: que a “inteligência é a escolha entre recordações” (P. Valéry) e que “quando se intersectam duas imagens para encontrar uma terceira, é preciso apagar duas delas” (J-L. Godard). De certa forma, os outros edifícios e lugares operam como uma caixa de ferramentas numa relação material com as ideias que alimentam a nossa imaginação. Para concluir com mais um aforismo de Godard, trata-se principalmente de “confrontar ideias vagas com imagens claras”. Isso é particularmente útil para estabelecer uma linguagem comum entre arquitetos, trabalhadores e futuros habitantes, em torno de uma matéria particularmente abstrata e que muitas vezes é difícil de discutir sem exemplos: o espaço.
Tornavento
Como reentram as disciplinas externas à arquitectura no processo do projecto?
atelier local
Quer se queira quer não, o conhecimento humano é demasiado complexo para ser produzido ou mesmo compreendido por um único indivíduo. É de natureza coletiva, abrangendo geografias de tempos e espaços muito para além de nós mesmos. Isto pode soar como uma banalidade, mas mesmo tendo o seu próprio conhecimento, ferramentas e procedimentos específicos, a arquitetura em particular opera mais como um processo de síntese dos resultados de outras disciplinas do que estritamente como uma disciplina, no sentido de um segmento muito bem recortado do conhecimento. Envolve geometria, política, física dos materiais, climatologia e por aí em diante, desde as fases iniciais do projeto. Está incorporada no próprio processo de pensar a arquitetura, e não apenas quando um engenheiro nos informa sobre convenções ou normas que devemos cumprir. Melhor dito, essas disciplinas não reentram, pois, na verdade, nunca abandonam o projeto em qualquer fase da concepção. Do nosso ponto de vista, é muito difícil isolar o conhecimento especificamente arquitectónico que levamos para cada projeto, pois ele está sempre em relação com algo para além de si mesmo. Mesmo quando se trata simplesmente de escolhe uma cor.
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Como é a vossa relação com os clientes?
atelier local
Essa relação varia e depende consideravelmente de quem encontramos do outro lado da mesa. Como prática artística, acreditamos que a arquitetura, apesar da sua inutilidade e crónica ineficiência (ou precisamente por causa delas), deve procurar transformar a vida quotidiana. Apreciamos particularmente a formulação provocativa de Lawrence Weiner quando afirmou que “a arte deveria foder com a vida das pessoas”. De forma positiva, isso significa que mesmo em pequena escala, um projeto de arquitectura pode induzir os seus habitantes a pôr em causa alguns dos seus hábitos ou protocolos domésticos. Trata-se de questionar etiquetas que herdamos, mas que podem já não fazer sentido. Claro que isso nunca é o que fomos originalmente contratados para fazer, por isso torna-se sempre uma tarefa bastante difícil, às vezes fadada inevitavelmente ao fracasso. O que tentamos fazer é ouvir muito atentamente quem nos contratou e tentar encontrar algumas brechas no seu discurso. Essas brechas podem dar-nos margem de manobra para propor algo diferente. Algo que não faça parte de um briefing que é frequentemente informado por estereótipos, lugares-comuns e pelas últimas tendências do mercado encontradas no Pinterest, e que raramente são sinónimo de qualidade.
Uma condição importante para entender o nosso campo actual de acção é conhecer as classes médias para as quais temos trabalhado. Generalizando, aquilo que caracteriza as suas aspirações domésticas é imaginar uma casa que não conseguem pagar. Isso cria frustrações e dificuldades de entendimento ao longo do processo de trabalho. No entanto, foi o Siza quem escreveu anteriormente que projectar casas privadas para a classe média lhe ensinou a paciência e a atenção necessárias para realizar posteriormente processos participativos como a Malagueira, sem sucumbir à tentação demagógica de responder a todos os pedidos de quem participa. As impossibilidades que surgem destes impasses abrem brechas. É por isso que conseguimos realizar algumas das nossas propostas. As limitações materiais obrigaram quem encomenda o projecto a considerar outras hipóteses.
Neste contexto, é fundamental que se consiga pôr de lado alguns preconceitos e depositar mais confiança em quem foi contratado para desenvolver o projeto. Sem confiança, o nosso papel torna-se irrelevante e contraproducente. Na maioria dos casos, tivemos sorte a esse respeito; mas também tivemos casos de clientes que não confiaram o suficiente em nós e, no final, não conseguiram levar o projeto adiante por razões orçamentais. Ou pior ainda, casos em que a relação se tornou tão desrespeitosa da parte de quem nos contratou que preferimos não continuar e nos despedimos do projecto.
Tornavento
Qual é a vossa relação com o lugar onde têm de criar um edíficio?
atelier local
Como explicámos anteriormente, a nossa relação com os lugares não é determinista, nem romântica nem nostálgica. Os lugares são condições materiais com as quais temos de lidar e preferimos incorporá-los nas nossas propostas. A opção contrária não é uma escolha para nós e sentimo-nos confortáveis com essas restrições. No entanto, os lugares têm tanto valor pelo que são como pelo que podem vir a ser. É para isso que serve a arquitetura. Afinal, praticamente nenhum lugar permanece intocado e todas as cidades que conhecemos surgiram eventualmente de alguma invenção original, por assim dizer, dentro e contra os lugares onde agora estão estabelecidas. Agora, as cidades existem e são belas, quanto mais não seja, por esse mesmo motivo. Não importa o quão antigas ou decadentes sejam, não importa o quão transformadas, fragmentadas ou incompletas. As cidades, assim como outras formas da paisagem, são belas porque são obras de arte coletivas, a maior sedimentação de trabalho humano, de cultura e conhecimento condensados em matéria. Cada rua, cada praça e cada jardim, mas também cada beco, rua sem saída ou terreno vazio. Por cidade, não nos referimos estritamente ao seu núcleo mais consolidado, geralmente reconhecido como “histórico”. Cada fragmento é belo pelo que é, ou seja, pelo seu potencial de se transformar em algo diferente. Cada lugar é como algo que está ali à nossa espera para ser tomado, virado de pernas para o ar e re-combinado. É por isso que nos sentimos igualmente confortáveis a viver e a trabalhar na periferia.
Tornavento
Quão importante é o detalhe construtivo no vosso trabalho e de que forma lidam com ele?
atelier local
A nossa arquitetura não é uma arquitetura que viva do detalhe. Com isto queremos dizer que a pormenorização não é a fonte do nosso interesse nem aquilo a que geralmente dedicamos a maior parte do nosso tempo de trabalho, digamos, focados em desenhar detalhes particularmente sofisticados. Na verdade, sentimo-nos bastante confortáveis a trabalhar com materiais correntes e soluções de catálogo, mesmo que frequentemente tentemos subvertê-los de alguma forma. Claro que isso não significa que ocasionalmente não se encontrem detalhes mais complexos nas nossas obras, como por exemplo em termos de carpintaria e marcenaria.
No entanto, quando isso acontece, procuramos sempre desenvolver as soluções com os artesãos que vão fabricar as peças. Temos uma relação muito forte com um carpinteiro específico, com quem gostamos de colaborar sempre que possível. O nosso contributo é principalmente conceptual, enquanto que o dele é principalmente técnico: mas não apenas, e a síntese resulta sempre num desenho feito a várias mãos. Esta é uma das razões pelas quais nos chamamos atelier local, em vez de “Rebelo & Paupério arquitetos”, um acrónimo dos nossos nomes, ou algo equivalente… De qualquer modo, entendemos que evitar detalhes complicados é também uma forma de prestar atenção ao detalhe. Por esse motivo, e para sermos provocadores, talvez se possa afinal dizer, no fim de contas, que a nossa arquitetura é uma arquitetura do detalhe.
Tornavento
Como explicariam o modo como escolhem os materiais nos vossos projectos?
atelier local
Não temos aquilo que possa considerar-se uma obsessão ou sequer um fascínio especial por qualquer material em particular. Tendemos a utilizar bastante a madeira nos nossos projetos, não apenas porque a madeira é bonita e percepcionada como um material muito acolhedor pela maioria das pessoas, mas sobretudo porque apreciamos realmente trabalhar com o carpinteiro de quem falamos antes. Dito isto, é óbvio se olharmos para o nosso trabalho construído que atribuímos bastante importância à textura e à cor, para além da forma. Não é que sejamos particularmente movidos pela fenomenologia, mas apreciamos ambientes bastante carregados: atmosferas ricas, embora na maioria das vezes essas atmosferas acabem sendo fabricadas a partir de materiais simples e pobres. Gostamos de usar materiais brutos sempre que possível. No entanto, não hesitamos em pintá-los, de vez em quando, para destacá-los, por muito pouco dinheiro. Claro que quando se trabalha com orçamentos reduzidos e se descobre que um material como o MDF hidrófugo pode ser usado conforme encontrado, respondendo a todas essas ambições num gesto único e barato, este reencontrará repetidas vezes o seu caminho em vários dos nossos projetos. Resumindo, gostamos de encontrar beleza nos materiais mais ordinários, olhando para eles tanto pelo seu valor de uso como por um valor estético intrínseco que por defeito não costuma ser considerado como tal.
Tornavento
Em geral, como é a vossa relação em geral com os trabalhadores e a gestão do estaleiro de obra?
atelier local
Nós gostamos de promover uma abordagem colaborativa durante a obra. Como arquitetos, possuímos um conhecimento específico que é principalmente conceptual e organizacional. Por outro lado, os trabalhadores têm a experiência e o conhecimento técnico para transformar essas ideias num edifício sólido e bem construído. Isso estabelece hierarquias que mudam de direção dependendo do que está a ser discutido, criando não tanto um sentido simplista de horizontalidade, mas acima de tudo de responsabilidade mútua. Cada parte tem a sua responsabilidade, que não pode ser substituída. Esta é a definição de um atelier local: a mobilização de todas essas habilidades diferentes num todo que seja maior do que a soma das partes, resultando num processo verdadeiramente coletivo do projeto.
Naturalmente, no mundo real, ou seja, sob as lógicas produtivas do capitalismo tardio, isso nem sempre é possível. Por um lado, porque requer a disposição de todas as partes para fazer essa dinâmica emergir; mas principalmente porque exige um tipo de tempo e dedicação que as metodologias orientadas pelo lucro e os procedimentos de tomada de decisão dificilmente permitem hoje em dia.
Tornavento
Podem explicar-nos uma das vossas obras?
atelier local
Para compreender o contexto em constante movimento em que operamos, podemos partilhar a experiência do nosso primeiro projeto. Concluímos a construção neste verão [2023], embora tenha sido encomendado há quase 5 anos, ainda antes de estabelecermos formalmente a nossa prática. Este projeto consiste numa pequena casa de férias em Ancede, na região do Douro.
Desde muito cedo, grandes incêndios florestais afectaram Portugal, levando à ampliação das Reservas Ecológicas Nacionais, nas quais o seu terreno foi incluído. Entretanto, a recente pandemia alterou profundamente as relações de trabalho. Agravada pelo bloqueio do Canal de Suez, a guerra na Ucrânia e muitos outros conflitos geopolíticos, isso desencadeou uma inflação absurda. Combinada com a actual escassez de mão-de-obra qualificada na construção em Portugal, o projecto original tornou-se impossível de realizar. Devido a tudo isso, fomos obrigados a desenhar diferentes versões dessa mesma casa. Ainda assim, o projeto mudou constantemente ao longo da construção, escapando constantemente ao nosso controlo e forçando-nos a reformular o nosso próprio método de trabalho. No final, um projeto que tinha a premissa de reconstruir uma casa em pedra, a partir de uma ruína existente, transformou-se numa espécie de casa tosca e inacabada, quase reduzida ao seu esqueleto. Tudo teve de ser construído do zero, de acordo com as limitações técnicas de um empreiteiro local. E ainda assim, houve algo do projeto original que permaneceu fiel aos seus princípios até ao fim, pensando sempre o projecto como se se tratasse de uma reabilitação. Seja em relação à sua escala, à sua distribuição espacial…
Rossi argumentava que, ao longo do tempo, “a forma permanece, o conteúdo muda”. Neste caso, a forma permaneceu, mas os materiais tornaram-se os mais baratos possível: pilares e vigas de betão, blocos de betão térmico correntes, MDF hidrófugo e pouco mais. Produzidos para permanecerem ocultos, todos esses materiais foram utilizados “como encontrados” e “como são”, no espírito dos Smithons ou de Kazunari Sakamoto. De facto, as condições materiais moldaram o alcance das nossas ideias até ao ponto em que finalmente entendemos o significado do Novo Brutalismo, pese embora não sejamos particularmente fascinados por betão. Os Smithons escreveram que “qualquer discussão sobre o Brutalismo perderia o ponto se não levasse em conta a tentativa do Brutalismo de ser objetivo sobre a ‘realidade’ - sobre os objetivos culturais da sociedade, os seus impulsos, e por aí em diante.” O Brutalismo, afirmavam, “tenta enfrentar uma sociedade de produção em massa e arrancar uma poesia áspera das forças confusas e poderosas que estão em jogo.” No nosso caso, o projecto tentou arrancar dessa realidade confusa a mera possibilidade de existir como obra.
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Que o edifício projectado por outro arquiteto gostariam de ter construído? Porquê?
atelier local
Essa é uma pergunta muito difícil de responder. Não há um edifício específico que gostássemos de ter construído. Há muitos que admiramos profundamente, projectados por arquitectos muito diferentes e em períodos muito distintos. No entanto, há um projecto tão excepcional que a perspectiva de nunca vir a fazer algo sequer próximo em termos de relevância nos deixa frustrados. Trata-se da proposta realizada por Lacaton & Vassal para a Praça Léon Aucoc, em Bordéus. Pode parecer que estamos a ser deliberadamente provocadores, mas é esse o edifício que gostaríamos de (não) ter construído nós mesmos. A forma como conseguiram convencer a câmara municipal a não realizar seu próprio pedido é particularmente inspiradora. Tratava-se de um processo de embelezamento que eles consideraram desnecessário após um trabalho cuidadoso de observação e da tentativa de compreender como os habitantes se relacionavam com a praça tal como ela já existia. Na prática, tudo o que era preciso era apenas cuidar adequadamente da sua manutenção. Esse foi o projecto final deles para a praça e muda radicalmente a atitude que se pode adoptar para cada projecto empreendido. É, sem dúvida, um dos maiores actos de resistência na história da arquitectura, e portanto um dos exemplos mais pertinentes daquilo que os arquitetos deveriam transportar consigo para o século XXI. Num momento em que se torna cada vez mais claro que cada novo edifício tem pesadas implicações para a catástrofe ambiental em curso, ou que as iniciativas de embelezamento urbano acabam com demasiada frequência por ter efeitos gentrificadores perversos para os lugares e para os seus habitantes, a praça León Aucoc aponta-nos uma direcção alternativa para o futuro da arquitetura e da sociedade.