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Se excluirmos o período nebuloso em que os projectos aparecem antes de existirmos, a maioria do trabalho realizado até hoje no âmbito da nossa prática profissional, fundada em 2019, foi levado a cabo em circunstâncias históricas muito específicas. Na ressaca da crise económica de 2008 (e, em Portugal, particularmente desde os anos da Troika) o sector imobiliário – e, por arrasto, a indústria da construção e da arquitectura – foi reiniciado, tornando-se fonte de investimentos seguros não só para a finança nacional como internacional, que então se reerguia incentivada pelo próprio Estado. Na maioria dos casos, no entanto, essa economia não tem correspondência com as reais necessidades das populações. Pelo contrário, prolonga o desenvolvimento desigual do território, privilegiando o seu assentamento em práticas de renovação urbana – isto é, sem eufemismos, de desenraizamento e gentrificação urbana – cujas consequências habitacionais são incontornáveis e já se tornaram por demais evidentes.
Ao mesmo tempo, bastante específicas, porque o momento em que os nossos primeiros projectos começaram a ganhar corpo coincidiu com o espoletar da pandemia SARS-CoV-2. Um acontecimento à escala mundial que, mais do que criar novas contradições, revelou e acentuou à escala local as que existiam latentes nas cadeias produtivas e logísticas do capitalismo globalizado, que sincroniza, pelo menos desde o fim do século passado, todo o planeta.
Se as razões para o estado actual da economia são múltiplas e intrincadas, não encontrando neste texto espaço para uma análise aprofundada, as suas consequências são já visíveis por todo o lado e particularmente apreensíveis na esfera da construção e das áreas de comércio associadas; não podendo, portanto, ficar fora de uma reflexão rigorosa sobre as condições que determinam a nossa prática.
Por um lado, a escassez de matérias primas e a inflação dos preços colocou a nu anos de desinvestimento, desmantelamento e deslocalização do aparelho produtivo nacional para outras partes do mundo, sujeitando a indústria nacional a uma importante dependência da importação e, portanto, não só do funcionamento dessas outras economias, como da sua capacidade logística: sujeita a acordos e desacordos, sanções e embargos e, sobretudo, aos custos do combustível necessário para transportar todas essas mercadorias. Ao mesmo tempo, tornou-se claro que uma catástrofe ‘natural’, um navio encalhado no Suez ou uma quebra na exportação dos países que extraem e transformam essas matérias-primas, são capazes de pôr em causa, uma vez combinadas, até o inventário de uma máquina afinada e aparentemente infalível como a IKEA.
Por outro lado, e em paralelo com esse desmantelamento, a escassez de mão-de-obra operária, significativa na indústria da construção, veio demonstrar as consequências inevitáveis de décadas de desvalorização do trabalho e de emigração forçada: provocada pela precariedade dos vínculos e das condições laborais, pelos baixos salários ou pela desvalorização simbólica de certas profissões em detrimento de outras, fruto de um mundo em que a divisão entre trabalho intelectual e manual é tão vincada. Por tudo isto, e porque o projecto passou para a obra, onde com o pedreiro ou com o carpinteiro as discussões balançam entre o detalhe e a geopolítica para que seja possível construir um espaço digno, a questão que se coloca passa a ser a seguinte: onde fica a arquitectura – como prática e como disciplina – no meio de tudo isto?