Eram mulheres e crianças
Cada um c’o seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
Quem diz o contrário é tolo
Em 1923, enquanto mote do último capítulo de Vers une Architecture, Le Corbusier declarou: “Arquitectura ou Revolução”. Porém, durante uma recente passagem pelo Algarve, as fotos que um companheiro de viagem [1] fez dos bairros S.A.A.L. –Serviço de Apoio Ambulatório Local– em Quarteira (Loulé) e Meia-Praia (Lagos), projectados e construídos durante a Revolução Portuguesa [1974-75], recordaram-nos que a relação entre ambos –Arquitectura e Revolução– não é um dilema, mas antes um processo dialéctico.
Não criemos ilusões ao leitor: não pretendemos com este texto afirmar que exista algo como uma arquitectura revolucionária. Por um lado, sabemos que Le Corbusier não se referia no seu texto apenas a uma revolução política, mas sobretudo sociotécnica. Ou antes, à possibilidade de evitar a primeira, provocada pela segunda, através da própria arquitectura. E, por outro lado, tendemos a concordar com Tafuri quando este afirma não poder existir uma estética ou arquitectura de classe, mas apenas uma crítica de classe da estética, da arquitectura e da própria cidade [2]. Argumentar o contrário, portanto, não é o objectivo desta breve reflexão. No entanto, o que estas fotos nos permitem é pensar a forma como a arquitectura destes bairros funciona ainda como palimpsesto desses acontecimentos revolucionários, já com quase meio século.
Toda a arquitectura é fragmento construído de uma utopia. Mas como parte de uma utopia, isto é, de um lugar que não existe (ainda), toda a arquitectura permanece, por essa mesma razão, inacabada. A sua qualidade reside precisamente na margem de manobra de que esteja dotada a sua intenção projectual, de tal modo que seja capaz de acomodar as correções necessárias ao devir da sua utopia. No caso do programa S.A.A.L., essa passava pela «luta por casas dignas e decentes como alternativa dos moradores pobres e dos operários da construção civil». [3]
Na verdade, se algo podemos dizer de forma transversal sobre a miríade de projectos realizados no âmbito do programa S.A.A.L. é que estes são o espelho da energia, da multiplicidade de intenções, bem como das contradições que surgiram durante a revolução portuguesa.[4] Distribuídas por quase todo o país em virtude de um decreto ministerial que permitia às populações organizarem-se de forma autónoma e colectiva na luta pelo direito à habitação e à cidade, cada operação e cada bairro foram resultado de condições materiais e objectivas, mas também ideológicas e subjectivas, que lhes eram próprias: dos lugares onde seriam construídos, dos seus habitantes e respectivos modos de vida, assim como das brigadas técnicas com quem projectavam os seus bairros.
No Sul de Portugal, nomeadamente no Algarve, o espírito de solidariedade de uma população profundamente empobrecida reverbera através da cultura artística da época. Em particular, a dos «índios» de Meia-Praia, cantados por Zeca Afonso, cujo esforço colectivo se imortalizou no documentário Continuar a Viver (1976), de Cunha Telles. Mais propriamente, nas imagens de uma comunidade que carrega cabanas com as suas próprias mãos, ou das suas mulheres e crianças carregando tijolos sob um só lema: «o pão incerto para todos é mais importante do que o supérfluo para alguns».
Mais do que a reivindicação pelo direito a uma casa digna, a materialidade subjectiva deste processo assegurou a inclusão de cidadãos que, até então marginalizados, tinham agora presença e voz na construção da sua própria cidade. No Algarve, onde as populações em questão eram em grande medida constituídas por pescadores, a autoconstrução (prevista pelo decreto de forma a minimizar os custos de construção[5]) foi tida como a solução pragmática encontrada para agilizar a viabilidade desse processo e levar a cabo, com êxito, em cerca de ano e meio, a construção de mais de mil fogos na região. Hoje, ao percorrer os bairros de Quarteira e de Meia-Praia, esta consciência inscreve-se não só no projecto original, mas também no carácter e na imagem actuais da sua arquitectura.
As casas individuais, de um ou dois pisos, agrupam-se em pequenos quarteirões. Os pequenos quarteirões, de planta recortada, encaixam-se e organizam-se entre si de tal forma que desenham uma série de pequenos espaços públicos, difíceis de nomear. Entre a cidade e o interior das casas, um labirinto de pátios, alpendres e terraços confirmam este sentido de vizinhança, reflectida numa arquitectura de umbrais capaz de provocar inveja aos estudos mais eruditos do Team X. Estrutura eficiente e pragmática, mas capaz de integrar em si mesma a complexidade da vida quotidiana, a singularidade dos seus habitantes, através de uma apropriação patente em ambos os bairros.
Ainda que os moradores não apareçam nas fotografias, a sua presença é incontornável. Cada acrescento ou ornamento sobrepostos à arquitectura originalmente despojada das casas funciona como um espelho que reflecte para a cidade as necessidades, os gostos e os desejos mais profundos dos seus habitantes. A vegetação cuidada que organiza os espaços exteriores colectivos, sobretudo em Quarteira, demonstra a vontade dos habitantes em fazer sua a cidade. Por sua vez, numa clara referência à arquitectura vernacular do Algarve, as molduras das janelas, as cores vivas, os balaústres, as chaminés, as cantarias (e inclusive alguns murais dignos do epíteto surrealista!) expressam em voz alta um sentido espontâneo de pertença a uma comunidade e a uma história mais amplas. Mas também, e talvez o mais importante, expressam a conquista do direito a pertencer a estas, que tanto custou a conseguir. Afinal de contas, para além de uma casa digna, a possibilidade de se exprimirem foi uma das principais conquistas da revolução.
Contudo, as utopias correm sempre o risco de dar lugar a outras utopias, ou inclusive a distopias. Caminhar hoje pelos bairros S.A.A.L. no Algarve, escritos e reescritos pelos seus habitantes, é testemunhar os êxitos, mas também os fracassos e as profundas contradições que persistiram depois da revolução portuguesa. Em Quarteira, o bairro forma agora parte do tecido urbano de uma cidade que cresceu exponencialmente, funcionando como uma ilha de tranquilidade na azáfama do que é agora uma densa colónia turística. Na Meia-Praia, pelo contrário, o abandono por parte do município é denunciado pela debilidade e pela ausência de infraestruturas públicas. E, neste sentido, o aspecto precário de alguns edifícios revela não só uma condição socioeconómica desprivilegiada dos moradores, como também a incapacidade de obterem, por parte do município ou do Estado, uma assistência técnica adequada.
Os carros, estacionados em frente às casas, denunciam os contrastes entre classes sociais, que teimam em persistir. As evocações do vernáculo, outrora caracterizado pela utilização de materiais locais, sujeita-se agora à utilização de produtos disponíveis nas grandes superfícies internacionais de bricolagem, ocultando essas contradições por debaixo do velo ilusório de uma (apenas aparente) pequena-burguesia mundial.
Caminhar, fotografar e escrever sobre as diversas camadas destes palimpsestos serve apenas para encontrar pretexto e inventar o tempo para nos questionarmos sobre tudo isto. Quanto mais não seja, para nos lembrarmos que a certa altura, em Portugal, houve Arquitectura e Revolução. Ou melhor: que a certa altura, em Portugal, houve arquitectura, porque houve revolução.
- As fotografias foram tiradas por Francisco Ascensão, arquitecto e fotógrafo co-fundador do projecto Atlante.
- Manfredo Tafuri, Architecture and Utopia: Design and Capitalist Development, The MIT press, Cambridge, 1976, p.179.
- Livro Branco do SAAL 1974-76, Conselho Nacional do SAAL, Lisboa, 1976, p.7.
- A este propósito, recomenda-se 0 documentário As operações SAAL (2007), realizado por João Dias.
- O programa S.A.A.L. foi decretado pelo Ministério da Administração Interna e o Ministério do Equipamento Social e do Ambiente, com o objectivo de resolver a precariedade do parque habitacional existente. Permitindo às populações necessitadas organizar-se e reivindicar do Fundo de Fomento da Habitação o financiamento e assistência técnica necessários para a construção de casas e outras infraestruturas colectivas, essenciais para a vida em comum.