A Cultura é ordinária: esse deve ser o nosso ponto de partida.
Quem se espantaria que o luxo do pobre seja sem invenção, se se trata de um empréstimo tomado de um outro empréstimo? O cenário de que o operário se apropria hoje é aquele do qual esteve até agora excluído.
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Apesar da proliferação de imagens que caracteriza a obra de fala atelier, pelas quais se tornaram tão reconhecíveis e reconhecidos, há uma que espelha melhor do que todas as outras, no nosso entender, aquele que possa ser o principal sentido do seu projecto. Referimo-nos à fotografia escolhida para capa de uma publicação monográfica editada na série 2G (Walther König, 2019) a propósito do seu trabalho. Nessa imagem pode ver-se a casa construída em Famalicão segundo o projecto 072 que, segundo os próprios autores, “se sente como uma casa” (ou, como veremos mais à frente, que “parece uma casa”) e procura assim apontar a mira a uma espécie de “complexidade consensual” [1]. O que nesta imagem capta imediatamente a nossa atenção é o facto de em primeiro plano encontrarmos não o projecto em si, remetido para o plano de fundo, mas uma outra casa. Uma casa que na sua aparente banalidade se confunde com tantas outras encontradas por lugares periféricos, ou ao largo dessa “rua da estrada” [2] que se vai estendendo ao longo de Portugal.
- A descrição sucinta do projecto está escrita no site do atelier em língua inglesa, onde se podem encontrar, respectivamente, as expressões “A house that feels like a house” e “a plan aiming for an agreeable complexity”, que foram aqui livremente traduzidas. Cf. https://falaatelier.com/072
- Álvaro Domingues (2009). A Rua da Estrada. Dafne editora.
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Que uma obra de arquitectura seja retratada à luz do seu contexto, próximo ou distante, não constitui por si só um feito notável. Que seja comum, contudo, escolher-se para a capa de uma monografia um ponto de vista em que essa obra não se destaque enquanto figura, remetendo-se antes à condição de fundo, já não se pode afirmar com tanta ligeireza. Sobretudo, quando aquilo que a rodeia não retrata um cenário propriamente idílico ou extra-ordinário, uma “paisagem” a contemplar coroada pela presença de mais um “objecto” [3]. Um olhar atento e uma breve análise comparativa sobre as duas casas, contudo, revela rapidamente aquele que se imagina ter sido o propósito do fotógrafo quando decidiu dar relevo à primeira (apesar de esta já lá se encontrar antes e, ao que tudo indica, ter-se mantido intocada pela intervenção projectada pelo atelier). Na verdade, consciente ou inconscientemente, essa casa da frente parece estabelecer a matriz que definiu em termos compositivos a imagem do projecto 072. Tripartida entre um pódio de pedra, uma coluna que se liberta da parede (com a sensibilidade de quem parece conhecer o engenho do templo romano ou do pórtico Palladiano) e uma arquitrave que sustenta um frontão proeminente, essa pequena casa, de cariz popular e construída com recurso a técnicas construtivas e materiais modestos, parece querer reivindicar ainda assim a dignidade e a pretensão artística próprias de um templo clássico.
- Pedro Levi Bismarck (2020). Arquitectura e “pessimismo”. Sobre uma condição política em arquitectura. Stones against diamonds.
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Que assim o seja não é surpreendente. Sobretudo, se tomarmos por referência aquilo que escreveu Michel Verret [4] a propósito da constituição da arquitectura enquanto campo profissional e teórico autónomo, ou seja, da constituição de uma arquitectura com arquitectos. Uma arquitectura “com pedigree” por oposição, digamos, à “arquitectura sem arquitectos” que interessou Rudofsky [5] e cujo saber partilhado assentava principalmente em dois princípios que nos cabe aqui enunciar sem tempo para aprofundar: fazer com e fazer como. Ainda que noutros moldes e com outros recursos, essa condição estendeu-se desde essa arquitectura vernacular até outras formas de arquitectura de expressão popular, nomeadamente algumas das mais contemporâneas como aquelas a que nos referimos neste texto. Mas a esse propósito será antes importante reflectir sobre a definição contemporânea do local no espaço-tempo de uma globalização que “faz explodir, camada após camada, os invólucros oníricos da vida colectiva arraigada, fechada e centrada sobre si mesmo”, arrastando “as cidades abertas ao comércio e até, no fim de contas, as aldeias introvertidas, para o espaço da circulação que reduz todas as particularidades locais a dois denominadores comum – o dinheiro e a geometria”. [6] Afinal, se ontem a pedra com que se construía casas e templos podia vir do próprio solo sobre o qual se implantavam as construções, hoje (a pedra ou a sua reprodução) pode ser adquirida na loja de bricolage mais perto de casa, mas terá sido produzida ou extraída com grande probabilidade num outro local do mundo.
- Michel Verret (1995). L’espace ouvrier. (Obra originalmente publicada em 1979) L’Harmattan. p.182
- Bernard Rudofsky (1964). Architecture without Architects. A Short Introduction to Non-Pedigreed Architecture. Doubleday & Company.
- Peter Sloterdijk (2008). Palácio de Cristal - Para uma Teoria Filosófica da Globalização. Relógio d’Água. p.38
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Como escrevemos antes, a propósito da constituição da arquitectura enquanto campo profissional e teórico autónomo o filósofo e sociólogo francês lembra-nos que “a classe operária não teve possibilidade de fazê-la por sua conta: excluída em simultâneo do campo da teoria, do campo da profissionalização arquitectural e das práticas de formalização que lhes dizem respeito, manteve-se no horizonte prático do habitante construtor ou do construtor habitante”. Precisamente por esse motivo, “dificilmente poderá [esta] desejar algo que não seja [o luxo] que viu: aquele, portanto, das classes cuja distância lhe permanecia mais próxima, o da pequena-burguesia”, ou melhor, o gosto “que a pequena-burguesia havia anteriormente copiado dos salões da burguesia, esses mesmos parcialmente transcritos dos salões nobres, numa cascata de deformações infligidas de queda em queda ao modelo original”. Reagindo à lisura da fábrica e à frieza do meio industrial, o ornamento adquiria nesse movimento de apropriação possível uma importância redobrada, porque operava como forma de “vingança contra a pobreza e a privação” sofridas. [7] No fundo, e por assim dizer, a economia da beleza tornou-se para a classe operária uma forma política de subversão reivindicada (e frequentemente bricolada) com as suas próprias mãos.
- A sequência de citações pode ser encontrada em: Michel Verret, op.cit. pp.186-187.
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Por outro lado, Verret explica-nos ainda existir um motivo para que esse ornamento popular tenha tão pouca qualidade. Aliás, “como poderia ser de outro modo se uma das funções da indústria é precisamente a de mascarar -o consumidor não é mestre da oferta- a falta de qualidade do produto: as alcatifas à falta de parquet, o papel de parede para esconder as rachaduras, os motivos desenhados para esconder o defeito do prato”? O operário, conclui, “está demasiado próximo da técnica para ignorá-lo”, mas está também “demasiado próximo da pobreza para recusar o defeito” e “demasiado longe da riqueza, e das saciedades, para aceder ou mesmo conceber o luxo supremo da simplicidade que o rico, cansado de todos os ornamentos por já os ter tido a todos, pode hoje oferecer-se nos produtos sem defeitos, mas de valor altíssimo, e portanto fora do comum, do artesanato da arte ou da indústria de luxo.”[8] Resumindo, quem historicamente se viu excluído da Arquitectura, viu-se também forçado a reproduzir apenas com os meios que tinha à sua disposição aquilo que lhe (a)parecia legítimo enquanto tal.
- Ibidem. pp.187. A este propósito, e sobre as relações entre uma abordagem estética “minimalista” e a sua dimensão de classe dentro da economia política do neoliberalismo, cf. Pier Vittorio Aureli (2014), Less is enough. On Architecture and Asceticism. Strelka Institute.
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Como sugere Pierre Bourdieu, enquanto bem material exposto à percepção de outrem a casa exprime ou trai de maneira mais decisiva que outros bens o ser social dos seus proprietários, os seus ‘recursos’, mas também os seus gostos, pelo que é fundamental compreender “a estrutura de distribuição das disposições económicas e, mais precisamente, dos gostos em matéria de habitação”, “sem esquecer de estabelecer através de uma análise histórica as condições sociais da produção desse campo em particular e das disposições que encontram a possibilidade de se concretizar de forma mais ou menos completa”. [9] Ainda que essa designação possa ser alvo de debate, são os herdeiros destas “classes populares”, outrora excluídas da encomenda de arquitectura e hoje, em parte, transformadas em classes médias empurradas para um acesso (cada vez mais dificultado) ao crédito como forma de resolver individualmente o seu problema da habitação, [10] que constituem actualmente uma importante base da encomenda não só do fala atelier como de tantos outros da sua geração. Por outras palavras, classes para quem a conquista do direito à habitação -nos melhores cenários acompanhada pelo direito à cidade e à arquitectura- foi substituída pelo “direito a comprar” [11] uma habitação -provavelmente longe do que possa sobrar de “cidade” e enquadrada, quase sempre, pela arquitectura já não como um direito, mas enquanto processo burocrático, responsabilidade jurídica e, potencialmente, como forma de valorização da mercadoria.
- Pierre Bourdieu (2000). Les structures sociales de l’économie. Seuil. p.35-37
- Ana Cordeiro Santos (2019). A Nova Questão da Habitação em Portugal. Actual Editora.
- O “direito a comprar” é um conceito que atravessa, pelo menos desde o início do século XX, a questão da habitação, e que remete em particular para a política adoptada por Thatcher nos anos 80, no sentido de alienar património público e, através desse processo, construir una nova classe de pequenos proprietários. A esse propósito, cf. Andy Beckett (2015). The right to buy: the housing crisis that “Thatcher build”
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O próprio fala atelier escreveu que a “vasta maioria dos [seus] clientes é como a vasta maioria das pessoas”, ou seja, “não tem interesse específico em arquitectura, demonstrando até por vezes um radical cepticismo relativamente à figura do arquitecto.” Contactam-nos, acrescentam, “porque precisam de papelada assinada e chegam já, frequentemente, com um catálogo de casas, apontando para aquela que desejam” ou cuja identidade, acrescente-se, vão construindo fragmento por fragmento com a ajuda de imagens avulsas coleccionadas no Pinterest ou noutra rede social equivalente. Imagens que se supõe constituírem uma expressão da sua singularidade, mais não sendo muitas (se não a maioria das) vezes, em boa verdade, do que uma transposição directa das modas e das tendências que vão sendo alternadamente “oferecidas” pelo mercado, em massa, aos consumidores. Imagens genéricas, claro, mas que ainda assim têm a virtude de demonstrar que continua vivo um desejo popular de aceder ao domínio privilegiado da estética.
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Neste contexto, incorporando as qualidades expressivas de uma estética do erro, que parece cada vez mais inevitável num contexto de deterioração das condições do trabalho e de quem trabalha, algures entre um imenso campo de referências disciplinares e a sensibilidade próxima de uma subjectividade popular partilhada, a arquitectura de fala atelier parece encontrar o seu justo lugar apesar das condições objectivas e subjectivas limitadas, ver precárias, em que se vê forçada a operar. Não será por acaso que nas suas obras, tal como no “espaço operário”, sempre que se faz notar um ornamento ou uma manobra formal amaneirada, existe uma forte probabilidade de estas corresponderem a um esforço para contornar ou distrair quem olha de um acaso inesperado ou de um defeito na execução do projecto. Numa curiosa inversão da ordem do projecto, a carga plástica que caracterizava as colagens que fala atelier usaram no início da carreira (enquanto estratégia para colmatar a ausência de obra e competir com a hegemonia visual das imagens que povoam a internet) parece agora ser resultado de uma estratégia projectual apurada para lidar com as actuais condições de produção da arquitectura em Portugal.
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No fundo, este é um dos pensamentos que transporta consigo a imagem de capa da revista 2G: se invertermos o sentido que determinou as “deformações infligidas, de queda em queda, ao modelo original”, a abordagem desenvolvida por fala atelier coloca em causa a hierarquia que se foi estabelecendo ao longo da história entre os cânones da arte erudita, de um lado, e a “ingenuidade” [12] da arte popular, do outro. Ou dito de outra forma, a distância que se estabeleceu entre o que costuma ficar do lado fora e o quem se considera estar dentro do campo disciplinar. Apreciando ou não o aspecto final da sua arquitectura, sendo essa ou não a sua intenção original, o que essa inversão de sentido nos permite é, sobretudo, repensar o modo como encaramos e reflectimos a partir das arquitecturas de expressão popular. Colocar de lado o desprezo e voltar a aprender dessa “economia local” (para usar uma expressão dos próprios): não tanto para elaborar uma renovada teoria da arquitectura popular como, talvez, a própria possibilidade de uma teoria popular da arquitectura. Se é verdade por um lado que uma das características da arquitectura popular foi, outrora, a sua condição vernacular, ou seja, a pertença e a partilha da cultura e das materialidades próprias de cada lugar, e por outro lado que a cultura existe sempre em relação com um sistema de produção subjacente, não é menos verdade que a cultura está hoje em larga medida globalizada e que uma parte substancial dos materiais com que construímos correntemente chegam de todo o mundo, através de cadeias internacionais.
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Claro está que se consideramos que (1) a arquitectura é uma arte; e que (2) a arte - a verdadeira arte - é sempre um procedimento que tem como propósito suspender o estado actual das coisas para instaurar novas verdades [13]; então, como bem explicou o Pedro Bismarck [14], essa teoria popular refere-se incontornavelmente a um povo que está ainda (e talvez esteja sempre) por inventar. Contudo, parece-nos igualmente evidente que esse povo que falta não será inventado a partir do vazio, nem surgirá de ideias formuladas no interior de um qualquer espírito (santo), mas surgirá antes da materialidade subjectiva de algo que já exista entre nós. Até porque se a cultura popular é hoje produzida comercialmente e segundo lógicas orientadas pelo lucro (pense-se, por exemplo, na quantidade de materiais “sintéticos” a “imitar” matérias primas de maior qualidade), por outro lado, esta continua a conter em si o gérmen de desejos e aspirações que não deixam de ser legitimas [15] e cuja potência política dependerá sempre daquilo que se venha a fazer com elas e com o destino que se dê a essas mesmas lojas de bricolage. Afinal de contas, o mármore português que tanto caracteriza a arquitectura de fala atelier, pode muito bem ser entendido entre os círculos académicos como uma referência erudita ao palazzo (ou à imagem do palazzo) renascentista; mas se considerarmos a origem dos seus fundadores, dificilmente nos convencerão que essa subjectividade não tenha sido sobretudo treinada, durante décadas, pela condição estética e por uma ecologia própria dessas periferias populares onde cresceram. De onde agora começam a chegar cada vez mais fornadas de arquitectos e de arquitectas recém-formadas; e, portanto, a partir de onde é urgente começar a pensar não só o passado, mas sobretudo o presente e o futuro das cidades, da sociedade e do que entre tudo isso há de arquitectura.
- A propósito da Arte Popular, Ernesto de Sousa enuncia como uma das suas principais características a sua condição naïf. Curiosamente, o mesmo adjectivo que fala atelier utiliza para descrever a sua própria abordagem à arquitectura. A esse propósito, cf. Ernest de Sousa (2014), Ernesto de Sousa e a Arte Popular. Em torno da exposição “Barristas e Imaginários”. Sistema Solar (Documenta)
- A. Badiou (1993). L’Éthique: essai sur la conscience du mal. Nous.
- Pedro Levi Bismarck (2023). “Falta a arquitectura”, Jornal Punkto, #37. A versão original desse texto foi publicada na Revista MA, da AEFAUP, em Setembro de 2020.
- Cf. Stuart Hall (1981), “Notes on Deconstructing “The Popular”, in Stephen Duncombe (ed.) (2002), Cultural Resistance Reader,Verso.