Há não muito tempo, enquanto fotografava a nossa casa-atelier, um amigo arquiteto e fotógrafo decidiu experimentar fazer algumas imagens com uma velha polaroid, que usava pela primeira vez. Curiosamente, esta máquina, que era nova nas suas mãos, tinha-lhe sido oferecida por um colecionador de Polaroids como agradecimento pelas imagens que tinha feito da sua casa, desenhada por um conhecido gabinete de arquitetura do Porto, e que o próprio considerava uma obra de arte. No entanto, à medida que o tempo ia cristalizando estas imagens instantâneas, que acabariam por formar o tríptico desfocado e esbatido que ilustra este texto, tornava-se igualmente nítida a incapacidade de antecipar totalmente o seu resultado. Controlando, por exemplo, a focagem e a abertura ou a velocidade do obturador, que em conjunto determinam a exposição de cada fotograma de filme à luz que define as imagens.
Contudo, naquele momento, essas fotografias imperfeitas despertaram também a memória de um outro episódio das nossas vidas, do qual, até então, não tínhamos retirado particular relevância. Quando vivíamos e trabalhávamos na Bélgica, mais precisamente em Bruxelas, tornámo-nos clientes habituais de uma pequena livraria de arte e arquitetura em Ixelles. De tal forma que todas as semanas deixávamos ali uma boa parte do nosso tempo e do nosso salário a construir a nossa biblioteca. Ao ponto de um dia nos terem oferecido um pequeno livro de Agnes Martin intitulado “La perfection inhérente a la vie” [1], que compila textos escritos pela artista ao longo da sua carreira. Em boa verdade, explicaram-nos na altura, estavam a oferecer-nos esse livro não só porque éramos clientes fiéis, mas também porque o livro estava danificado, ou seja, demasiado imperfeito para ser vendido. Um desacordo que, ironicamente, punha em causa a credibilidade do seu próprio título.
No entanto, a verdadeira lição desse episódio fez sentido para a nossa memória agora que começámos a construir alguns dos nossos primeiros projectos. Uma possível definição de perfeição seria a plena coincidência entre o mundo das ideias e o mundo da matéria. Claro está que, agora que começámos a construir, compreendemos que os dois são um só e, de facto, inseparáveis. Se na escola de arquitetura nos foi inculcada uma certa ideia (ou um certo idealismo) da forma como estes mundos se relacionavam, a prática da arquitetura veio agora confirmar-nos aquilo que a leitura dos materialistas dialécticos já nos tinha levado a suspeitar. Ou seja, que são muito mais as condições materiais do mundo em que vivemos que determinam as nossas ideias e muito menos o contrário.
É precisamente aqui que nos deparamos com a principal questão que pretendemos abordar neste pequeno artigo: em rigor, no mundo da matéria - como nos ensina a física com a sua teoria do caos ou as leis da entropia - a perfeição não existe. Algumas obras de arte tentaram precisamente abordar esta questão, como é para nós exemplo a série “Wrong” de John Baldessari. Isto é também algo que a própria Agnes Martin reconheceu, claro está, quando escreveu que nós, artistas, não somos capazes de representar a perfeição: “a obra está muito longe da perfeição porque nós próprios estamos muito longe da perfeição. Quanto mais vislumbramos a perfeição, ou quanto mais sabemos sobre ela, mais distante ela parece”. Sobretudo no caso da arquitetura, é preciso dizê-lo, quando entre as ideias e a obra realizada há inúmeras camadas de experiência, de conhecimento e sobretudo de trabalho e de trabalhadores com a sua própria perspetiva, as suas próprias razões e interpretações criativas. Artistas cujo trabalho, sem o qual a obra nunca veria a luz do dia, tende a ser desvalorizado ou mesmo rejeitado no que diz respeito à sua autoria colectiva.
Porém, no mesmo texto, Agnes Martin escreveu também que “o que parece um passo em falso é apenas o passo seguinte”. De facto, acrescentou a artista, esta impotência perante a imperfeição, perante os erros e mal-entendidos que acabam por dar uma realidade material à ideia, são também um potencial momento de emancipação: “É o momento em que os nossos preconceitos mais persistentes são ultrapassados, as nossas resistências mais profundas caem sob a faca e somos livres”. No nosso caso, estes desvios que se vão revelando em cada erro e em cada dificuldade encarada pelas ideias, e que acabam sempre por se desviar face às condições objectivas do trabalho, permitiram-nos dar um passo em frente e encontrar nelas uma outra perspetiva metodológica para os nossos projectos: o recurso à inteligência e à experiência dos trabalhadores e do seu trabalho coletivo. Ou, dito de outra forma, a possibilidade de encontrar a perfeição que existe na imperfeição, quando renunciamos ao desenho como forma de conhecimento estritamente autónomo e como elemento que separa as razões de quem deve pensar das razões de quem deve executar o seu pensamento, sem pensar e em alienamento. Deste ponto de vista, o projeto deixa de ser aquilo que precede ou que sucede a obra, para se tornar, como preconizava Sérgio Ferro [2], o próprio estaleiro como um lugar privilegiado do processo de discussão e de decisão, a que também se poderá chamar desenho.
O desenho, e o que é comummente designado por autoria, deixará então de ser da responsabilidade exclusiva do arquiteto ou do engenheiro, mas passa também a pertencer ao pedreiro, ao carpinteiro ou ao serralheiro, para citar apenas alguns dos restantes artistas. Em vez de ser lido como um erro, cada impasse que o projeto encontre in situ poderá tornar-se uma oportunidade para o debate e para a aprendizagem de uma forma transformadora de conceber em conjunto. Todo o tipo de condicionantes materiais torna-se num tema do projeto. E para além dos seus próprios cânones e dogmas, dos seus princípios abstractos e sensibilidades exclusivas, a arquitetura (e a sua definição) poderá aproximar-se para cada interveniente numa autogestão das suas razões estéticas e, finalmente, numa produção consciente e autodeterminada do espaço.
- Martin, A. (2013), La perfection inhérente à la vie, Paris: Éditions BAP
- Ferro, S. (2006), Arquitectura e trabalho livre, São Paulo: Cosac Naify