After five years of living é um título retirado do documentário realizado por Charles Eames sobre os cinco primeiros anos de vida de Charles e Ray na sua casa-estúdio, na Califórnia. É uma afinidade electiva muito feliz que se estabelece com este exercício de observação e auto-análise sobre a casa enquanto depósito de vida e trabalho no período após a sua construção e ocupação, de uma casa que é casa própria e atelier. Começa, assim, o anúncio de muitas outras afinidades e encontros que se vão descobrir no livro, sejam eles com arquitectos, poetas, filósofos, …, e que dão conta da solidez teórica do atelier local.
Há ainda outro aspecto curioso nesta afinidade electiva que gostaria de destacar, que é tratar-se, tal como eles, de um casal de arquitectos/artistas. Não é um acaso, nem um caso isolado. Para além de Charles e Ray Eames, potencia-se o diálogo com Alison e Peter Smithson, Denise Scott-Brown e Robert Venturi, Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal, e, ainda, embora neste livro não estejam tão presentes, Jean Renaudie e Renée Gailhoustet. Há algo de comum nestes casais que tem que ver com uma fusão entre trabalho e vida doméstica, o que culmina numa coerência muito forte entre vida e obra desvelada na estetização do seu quotidiano, ou da sua “arte de habitar”. [1] Há uma partilha de práticas, de gestos, uma transcrição no quotidiano de uma forma de habitar o mundo em que o universo pessoal e profissional são quase a mesma coisa.
E é por isso que a sua casa própria, ou casa-atelier, é a materialização mais evidente da essência do seu trabalho. Não só porque foi lá que experimentaram e cresceram com a sua primeira grande obra, mas igualmente porque é ao habitar esse espaço que se vão consolidando as suas ideias e convicções. A casa, depósito de vida, prolonga-se nos seus objectos. Novamente ressoam correspondências com os Eames e a sua casa-estúdio, ou com os Smithson e a sua casa de férias Upper Lawn. A casa-atelier está povoada de objectos da cultura popular, de figuras das cascatas dos santos populares colocadas nas janelas; de livros, muitos livros, nas estantes, nas secretárias, no wc, ou na mesa junto ao cadeirão, e, os menores, no chão, a elevar a cabeceira de um berço; de pássaros esvoaçantes; de esculturas que seguram a grande viga de madeira do espaço da sala; de estatuetas nos nichos das paredes de xisto; ou de fotografias e gravuras penduradas ou pousadas aqui e ali. Diria que tudo isto faz parte da sua arquitectura.
Se referi uma fusão da vida pessoal e profissional, isso não significa que haja uma condição hiperproductiva em que uma e outra não encontram fronteiras – o equilíbrio incorpora a preguiça e a inacção. [2] Nem isto significa que o João e a Maria sejam duas pessoas com características idênticas. O que acontece, sim, é uma partilha a duas cabeças e quatro mãos. Um episódio muito curioso que revela esta mesma ideia foi quando lhes perguntaram qual terá sido a obra que mais influenciou o projecto da sua casa própria e a cada um lhe ocorreu uma obra diferente, convicto de que o outro mencionaria a mesma. Eram a casa Latapie, da dupla Lacaton & Vassal, e a casa Van Wassenhove, de Juliaan Lampens. Embora estas casas sejam muito diferentes entre si, e muito diferentes da casa-atelier em Valongo, consegue-se perceber como a essência do projecto desta última está numa e na outra.
Na casa-atelier ensaiam-se modos de espacialização para acolher “formas de vida generosas” – uma expressão deles e o seu maior objectivo. Uma ideia humilde e tão forte. Isso repercute-se nos seus vários projectos e nas características que os conformam, que poderia agrupar em três tópicos:
i) Na fluidez do espaço. Um espaço cheio de ar, um espaço generoso para acolher essas formas de vida generosas, seguindo de algum modo o repto lançado pelos Lacaton & Vassal de mais espaço pelo mesmo dinheiro. Um espaço generoso, não só em planta, mas em volume, daí que as axonometrias sejam um importante instrumento de representação dos seus projectos;
ii) Num não-determinismo sobre a função alocada a cada um dos espaços, que estão receptivos a uma pluralidade de práticas, e num movimento alheio a convenções pré-estabelecidas da vida doméstica. É uma forma descomplexada de olhar para as coisas. Geram-se espaços abertos ao inesperado, porque “as regras que guiam o desenvolvimento do projecto existem fora do tempo real. Toda a concepção da arquitectura se baseia em eventos que se assume que irão acontecer” [3] e o atelier local pretende poder acolhê-los;
iii) Num exercício de liberdade, tal como mencionam, ciente das privações e limitações existentes, mas que tira partido dessa condição e joga com ela. Estar condicionado por orçamentos baixos pode ser um exercício de liberdade. Ou então, contrariamente à eventual liberdade de tomar cada encomenda como a possibilidade de criar algo novo, opta-se por trabalhar a partir do que existe. Não me refiro a intervenções de restauro ou reabilitação de objectos considerados históricos, nem à reconstituição de um passado. Refiro-me a um entendimento de que aquilo que existe comporta um lastro de matéria e energia que não é descurado. Esta é uma perspectiva ecológica, em que ideias como “as found”, dos Smithson, ou “tudo é património”, dos Lacaton & Vassal, se revestem de sentido. Ou ainda ao entendimento de Smiljan Radić sobre o acto de “reparar”, ententendo-o como uma operação que “permite a um objecto (…) continuar o seu devir temporal”, não por um interesse no seu passado, mas pela sua capacidade para o presente. [4] É ainda essa liberdade que permite, à boa maneira “brutalista” dos Smithsons, como eles citam, extrair poesia das coisas rudes.
Nada disto, que se pensa e faz, provém de uma atitude passiva do espírito que aguarda uma ideia iluminada durante a noite. Nem de uma intuição guiada pela candura e destreza do desenho. É, pelo contrário, fruto de um interesse e de um estudo contínuos, de uma forma de ser e de estar, de um trabalho que opera na construção de uma constelação de textos, de ideias e de imagens que informam a sua prática. Esta constelação extrapola claramente o universo autónomo da disciplina da arquitectura – a sua caixa de ferramentas está muito bem alimentada. E são esse conhecimento e o olhar astuto e crítico que, juntos, nas limitações encontradas, criam espaços de liberdade para pensar o espaço e, com ele, possíveis formas de vida.
O atelier local assume uma perspectiva disciplinar politicamente engajada, mas não iludida do seu alcance. O engajamento vinga na clarividência de saber ouvir o que os clientes têm a dizer e que pode vir a constituir formas de participação; de saber colaborar com técnicos, como os carpinteiros, valorizando e tirando partido da sua arte; de admitir e potenciar o erro; de reconhecer a vitalidade da (tão desprezada) periferia onde vivem e trabalham. Assume também disponibilidade para um imaginário. É curioso que em todas as suas casas haja uma ideia de elevação para algo. Há sempre um “sótão”, que pode não ser realmente um sótão, mas um mezanino, ou mesmo um outro piso da casa, que ganha esse carácter pelas laboriosas escadas que a eles acedem. São casas que se complicam, no bom sentido do termo, onde cabem o jogo [6] e o tédio [7].
Contam o João e a Maria, no início do livro, que este se deveu à sensação de insuficiência ou “neutralidade” que ficou quando tiveram oportunidade de apresentar o seu trabalho na revista AMAG. Ainda bem que assim foi, para termos acesso a este belo livro. A iniciativa de criar um espaço de partilha, que não poderia passar por aquele formato, assume-se, mais uma vez, como a procura de caminhos para lá de convenções ou práticas assumidas, como é a da natureza das publicações, neste caso. É algo muito próprio deles e que se manifesta numa ampla concepção da prática de arquitectura, em que a escrita assume o papel de plataforma paralela ao pensamento.
- Smithson, Alison & Peter, Changing the art of inhabitation, London/Zurich/Munich: Artemis, 1994.
- Han, Byung-Chul, A sociedade do cansaço, Lisboa: Relógio D’Água, 2014.
- Scalbert, Irenée, “Building in Japan” in A real living contact with the things themselves, Zurich: Park Books, 2018, pp. 78-79.
- Radić, Smiljan, “Se repara” in Habitaré mi nombre, Barcelona: Puente editores, 2022, p. 28.
- Bachelard, Gaston, A poética do espaço, São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1957], p. 27.
- Caillois, Roger, Os jogos e os homens, Lisboa: Cotovia, 1990 [1957].
- Russell, Bertrand, A conquista da felicidade, Lisboa: Relógio D’Água, 2015 [1930].