A nossa ligação ao atelier Baukunst, em Bruxelas, pode ser rastreada até uma época em que tanto nós como o escritório éramos muito jovens. Como estudantes que deixavam o Porto e se mudavam para um semestre de intercâmbio (Outono/Inverno 2013) na Université Catholique de Louvain, fomos obrigados a escolher um estúdio de projecto entre professores de que nunca antes tínhamos ouvido falar. Após alguma investigação, a prática de Adrien Verschuere destacou-se dentre as outras. Isto deveu-se não tanto ao fardo simbólico do seu nome, mas sobretudo à natureza misteriosa do seu sítio na internet.
Este era composto por três páginas, na sua maioria em branco. A página inicial apresentava apenas o nome do escritório, um endereço e um GIF acelerado com plantas de edifícios a preto e branco, que mais tarde viríamos a aprender ser uma selecção de (aproximadamente) um edifício por ano, desde os últimos mil. A partir daí, era possível aceder a uma página com o CV de Verschuere e uma lista de colaboradores (actuais e anteriores); ou então uma outra página contendo um slideshow com imagens crípticas de locais de construção. Imagens cuja particularidade era a de transmitirem menos os próprios edifícios – que estavam praticamente ausentes das imagens – do que o que estava para além destes. Para tal, concentrando-se no tecido urbano circundante, na vegetação que perfurava os edifícios ou no trabalho em curso dos próprios trabalhadores.
Hoje, com a devida distância, compreendemos que (para além de informação útil e objectiva) este layout fornecia a quem visitava o site um duplo enunciado, resumindo tanto a posição do arquitecto sobre a produção do escritório como a sua posição relativamente à disciplina da arquitectura. Por um lado, declarando que os detritos acumulados pela história são uma matéria-prima privilegiada para o pensamento arquitectónico. Por outro lado, de forma latente, demonstrando que a arquitectura é um processo de produção surgido de e em relação com o mundo material, que simultaneamente o supera e inclui.
Relativamente à produção do escritório, não era exposto um único desenho. Esta ausência de desenhos, contudo, não significava que desempenhassem um papel secundário nas práticas profissional e pedagógica da Verschuere – tanto com estudantes do primeiro ano, como com estudantes na eminência de receber o seu diploma. Um conjunto de práticas que, mais tarde, enquanto arquitectos a trabalhar no seu escritório tivemos a oportunidade de compreender de ambas as perspectivas. [1]
Na faculdade, no início de cada ano, cada aluno do seu atelier recebia um caderno com uma compilação de “documentos”. Nomeadamente, uma série de textos e uma vasta gama de plantas e cortes variáveis no seu tipo, desde cartografia territorial a plantas de edifícios históricos, passando por secções técnicas de diversos dispositivos infraestruturais. Estes desenhos eram previamente editados no escritório, a fim de se tornarem o mais abstractos possível, ou seja, desprovidos de qualquer conotação de época, lugar, autoria, função, escala ou estilo. Desse modo, transformavam-se em composições autónomas, reduzidas a linhas negras (mais grossas ou mais finas, contínuas ou intermitentes) capazes de evocar paredes, colunas, vigas, rampas e escadas (mesmo que não fosse o caso pelo qual tinham sido desenhadas), assim como um espaço em branco – dentro e fora dessas linhas – à espera de ser preenchido.
Apresentados como ready-mades, estes desenhos decretavam o tom para o semestre, uma vez que dos estudantes se esperava que fossem tomados como ponto de partida literal para o seu estudo e para os seus projectos. Quando os estudantes escolhiam uma planta, eram convidados a imaginar o corte correspondente. Se escolhessem um corte, era-lhes sugerido que o desenvolvessem no sentido inverso. Este exercício funcionou particularmente bem com estudantes do primeiro ano que estavam ainda a aprender a desenhar, tendo em conta a pouca cultura arquitectónica que tinham e, portanto, pelo facto de não estarem ainda iludidos por qualquer forma de ideologia disciplinar. Por fim, à medida que o exercício se desenrolava, os estudantes eram obrigados a imaginar de que forma estes desenhos poderiam tornar-se arquitectura, isto é, para que fins poderiam ser utilizados e em que lugar poderiam ser colocados.
Através deste processo, a aprendizagem do espaço tornava-se um pretexto para debates mais amplos. Um método que ecoa o método de ensino de Joseph Jacotot, desenvolvido no século XIX com o propósito de permitir aos estudantes aprenderem uma nova língua, por si próprios. “Sabem, em cada obra humana há arte; numa máquina a vapor assim como num vestido; numa obra de literatura, assim como num sapato. Portanto, pedia ele aos seus estudantes, vão redigir uma composição sobre a arte em geral, ligando as vossas palavras, as vossas expressões, os vossos pensamentos, a esta ou aquela passagem dos autores por nós indicados, para que tudo sejam capazes de justificar ou de verificar”. [2]
Sabemos com autoridade que a relação entre os métodos de Jacotot e aqueles praticados nos estúdios Verschuere não era deliberada, ou sequer consciente, embora uma feliz coincidência resultasse do facto de o método do primeiro ter sido também desenvolvido numa Universidade de Leuven. No entanto, a palavra de ordem do primeiro tudo está em tudo, princípio fundamental de um método que pressupunha a capacidade de cada um aprender sobre qualquer matéria, por si próprio, é claramente partilhado por ambos. No mesmo espírito, os assuntos ensinados e aprendidos (nem sempre por esta ordem) nos estúdios de Verschuere não se reduzem à natureza dos edifícios, ou por outras palavras, aos seus aspectos técnicos e estéticos. Pelo contrário, no processo de aprendizagem de uma gramática própria à arquitectura, os edifícios são também debatidos face às suas implicações socioeconómicas, culturais, políticas e ecológicas, com o objectivo de as integrar como matéria do projecto: desde a energia que consomem, até à distribuição dos corpos que tendem a inscrever no espaço.
Deste ponto de vista, a arquitectura é considerada como uma prática de pensamento dialógico e dialético, para a qual qualquer distinção entre história, teoria, e projecto – bem como entre disciplinas – é considerada artificial e, principalmente, contraproducente. Portanto, em vez de fornecer aos estudantes um sítio e um programa, encorajando-os a confiar no domínio da criatividade para encontrar “soluções” para um “problema”, os estudantes são convidados a reconstruir a natureza do próprio problema. De acordo com o caderno de introdução da unidade curricular, a arquitectura é considerada como “política do espaço”. Isto significa que a arquitectura deve ser “o resultado de escolhas críticas e racionais”, impulsionada por “um ponto de vista ‘pessoal’ que supera definitivamente a vontade do indivíduo, a fim de tornar-se partilhável”. [3]
Fornecer aos estudantes desenhos de edifícios já existentes visa precisamente essa superação. Tomá-los como ponto de partida, permite-lhes estudar tanto as condições objectivas como subjectivas registadas nesses documentos, sem que se concentrem demasiado na sua própria subjectividade. Estes desenhos tornam-se “objectos” partilhados entre o/a professor/a e o/a estudante, providenciando a ambos linhas de orientação e impedindo-os, assim, de se “perderem” em relativismos amaneirados ou em abstrações idealistas e desligadas da realidade material. Em vez disso, este processo incita-os a aprender como tirar partido dos elementos já existentes, com o objectivo de produzir novas condições e despoletar novos acontecimentos capazes de transformar a realidade. Nos estúdios de Baukunst, a formulação de perguntas adequadas é privilegiada em relação à formulação de respostas “correctas”. A autoria é deliberadamente subestimada, enquanto que a interpretação é considerada o instrumento privilegiado para a transformação.
Esta abordagem táctica ao ensino visa não só os estudantes, como também os seus professores, obrigando-os a substituir sistematicamente o ensino pela aprendizagem. Dito de outra forma, leva-os a envolver o estúdio numa pedagogia radical onde os professores não ensinam, transferindo os seus conhecimentos através daquela a que Paulo Freire chamava “educação bancária”, mas antes onde preferem orientar os estudantes para aprenderem por si próprios e, eventualmente, ensiná-los de volta. Afinal, não será por acaso que, em língua francesa, ensinar e aprender partilham um único verbo: “apprendre”.
Finalmente, reflectir sobre o ensino e sobre a aprendizagem da arquitectura conduz-nos, inevitavelmente, à questão da arquitectura como disciplina. No entanto, como Jacques Rancière explica no ensaio cujo título tomamos parcialmente de empréstimo, “é sempre muito mais do que um conjunto de procedimentos que permitem pensar sobre um determinado território de objectos. É, antes de mais, a própria constituição desse território e, por conseguinte, o estabelecimento de uma certa distribuição do pensável. Isto implica cortar através do tecido comum de manifestações do pensamento e da linguagem.” [4] Isto significa que a disciplina da arquitectura funciona, antes de mais, como o estabelecimento de uma fronteira que circunscreve o domínio do pensamento arquitectónico. Por outras palavras, predeterminando as modalidades de como os arquitectos devem pensar as matérias que eles (e só eles) devem, supostamente, abordar. Por outras palavras, determinando o que que os arquitectos devem saber e o que se espera que os arquitectos ignorem.
No entanto, ao contrário do que a produção inicial do escritório (bem como o seu próprio nome) possam sugerir, os modelos que Baukunst utiliza no seu trabalho e que Verschuere apresenta aos seus estudantes não estão estritamente enraizados na história da disciplina arquitectónica. Pelo contrário, estes podem muito bem pertencer às histórias da ciência e da tecnologia, como o notório interesse por outras disciplinas – tais como a botânica, a geografia ou a climatologia – patente no mais recente trabalho desenvolvido pelos estudantes do estúdio animado por Verschuere na École Polytechnique de Lausanne (EPFL) parece atestar. Nos vídeos por eles produzidos, a arquitectura continua a ser sobretudo o pretexto para descrever os fluxos metabólicos da natureza e do trabalho. Nos seus desenhos, a arquitectura continua a tender para o seu próprio desaparecimento, em nome da energia e de outras ‘substâncias frágeis’, para aproveitar uma expressão de Olivia de Oliveira.
De um ponto de vista pedagógico, isto representa uma tentativa para encetar aquilo a que Rancière chama uma prática “in-disciplinar” ou “in-disciplinada”: um movimento fundamental para colocar em crise os limites da disciplina arquitectónica, para desmantelar as narrativas que ainda mantêm os seus mitos e para procurar caminhar no sentido de uma dissolução dos seus próprios limites. Como demonstra, aliás, o título escolhido por Baukunst para o semestre que acaba de terminar na EPFL: “Non-Palladian Architecture”. Um esforço cada vez mais urgente para pensar “através das disciplinas”, para abordar a “estética do conhecimento” para lá de esquematismos e em toda a sua complexidade, e para sermos finalmente capazes de pensar e agir sobre “a emergente ruptura metabólica no sistema terrestre” cujas dramáticas consequências estamos já a experienciar.
- Depois da nossa passagem como estudantes pela UCL (LOCI Tournai), ambos nos tornámos arquitectos a trabalhar em Baukunst, entre 2014 e 2018. Em 2017-2018, o João ampliou esta relação tornando-se assistente convidado na unidade curricular de Projecto V, animada por Adrien Verschuere na mesma Universidade.
- Joseph Jacotot apud Rancière, J.(2013]. Le maître ignorant. Cinq leçons sur l’émancipation intelectuelle. 10/18. P. 74.
- Verschuere, A. (2017). Idéalités. Université Catholique de Louvain. P. 7.
- Rancière, J. (2008). Penser entre les disciplines. Une esthétique de la connaissance, Inasthetik, 0, 81-102. Consultado no dia 16 de Novembro de 2021, in https://www.diaphanes.net/titel/penser-entre-les-disciplines-1226. Versão portuguesa disponível inhttps://www.revistapunkto.com/2021/11/pensar-entre-as-disciplinas-uma.html