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[O conceito de] igualdade de que dispomos hoje não é filosófico, mas político: estaremos nós satisfeitas, depois de termos sido ignoradas durante milhares de anos, por nos inserirmos num mundo projectado por outros? Acharemos nós gratificante participar neste grande desastre humano?
Lina Bo Bardi nasceu Achillina di Enrico Bo, em Roma, no dia 5 de Dezembro de 1914, aproximadamente cinco meses após o início da Primeira Guerra Mundial. Viveu a sua infância e juventude numa sociedade ultraconservadora, inscrita numa Itália fascista. Quando decidiu que queria ser arquitecta, essa não foi uma escolha pacífica – era uma preferência pouco habitual para uma mulher e a sua família tentou demovê-la. [1] Mas essa tentativa não chegaria para a dissuadir de estudar na Faculdade de Arquitectura, em Roma, nem faria com que os seus pais deixassem de a ajudar, mesmo que apreensivos. Ainda que a larga maioria dos seus colegas fossem homens, a futura arquitecta não parecia sentir-se desconfortável no meio maioritariamente masculino que escolheu frequentar, completando os seus estudos sem grandes dificuldades. [2]
Embora tenha vivido até 1946 em Itália, seriam as experiências profissionais e as obras que construiu enquanto viveu no Brasil que a fariam ser (re)conhecida no mundo da arquitectura. Bo Bardi, que sempre foi discreta em relação à sua obra, “nunca quis em vida publicar um livro sobre o seu trabalho”, conta Marcelo Ferraz, seu colaborador desde 1977. “Costumava dizer: ‘Façam vocês, os pósteros, depois que eu morrer’. Com sua morte, em 1992, nos empenhamos em uma ambiciosa empreitada para trazer sua obra a público – nacional e internacionalmente”. [3] Tornando-se assim uma referência, aquilo a que se poderia chamar uma estrela [4], ainda que a maior parte desse reconhecimento tenha precisamente chegado apenas de forma póstuma. Ao ponto, inclusive, de ser reconhecida pela Bienal de Arquitectura de Veneza deste ano com um “Leão de Ouro Especial”, inserido no mote “How will we live together?” [“Como vamos nós viver em conjunto?”] – tema da edição de 2021.
Enquanto mulher no mundo da arquitectura, Lina Bo Bardi quebrou preconceitos, navegando numa profissão que era (e continua a ser) dominada maioritariamente por homens. Porém, isso não impede que ao olharmos para o seu projeto-de-arquitetura identifiquemos contradições existentes nos seus projectos e nas suas obras. Em nosso entender, são precisamente essas incoerências que tornam tão interessante uma leitura do seu percurso, capaz de revelar de que forma os seus projectos espelham a evolução de uma posição intelectual e política.
- Zeuler Lima, Lina Bo Bardi, New Haven/Londres, Yale University press, 2013, p.11.
- Ibid., p.15.
- Marcelo Ferraz, “O último brinquedo do professor Bardi – Instituto de Lina e Pietro Bardi completa 30 anos sem ter rumo”, Minha cidade, Maio de 2020, in https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/20.238/7754 (versão digital, consultado dia 15 de Janeiro de 2021).
- A expressão star architect é relativamente recente, não sendo utilizada quando Lina Bo Bardi começou a sua carreira (embora o estádio avançado desse sistema estivesse já bem estabelecido aquando da sua morte). No entanto, é fundamental enquadrar esse sistema de validação e ‘culto’ dos arquitectos numa história muito mais ampla de divisão do trabalho intelectual e manual – isto é, no processo histórico que consolidou a figura demiúrgica do/a arquitecto/a, cuja criatividade do disegno casaria na perfeição com o individualismo burguês, através da figura do profissional liberal. Personagem que concentra em si o capital simbólico do sucesso do projecto e da obra. A este propósito, cf. “Quel parti voulons-nous construire? Destituer les Architectes”, Lundi Matin, 17 Maio 2021, in https://lundi.am/Quel-parti-voulons-nous-construire (versão digital, consultada dia 15 de Janeiro de 2021).
- Zeuler Lima, op.cit., p.55.
2
A casa que Lina desenhou para si e para o seu marido, Pietro Maria Bardi, no Morumbi, em São Paulo, tornou-se a sua primeira obra construída enquanto arquitecta, entre os anos de 1951 e 1952. [5] Esta casa, celebrizada como “Casa de Vidro”, foi idealizada de modo a permitir a vida que Bo Bardi e o seu marido pretendiam construir em São Paulo: procurando uma casa que pudesse servir como ponto de encontro entre os mais variados intervenientes do mundo da arte e das culturas brasileira e internacional. Nas várias publicações sobre a obra da arquitecta podemos observar, tanto desde o exterior como do interior, diversas fotografias dos espaços de estar da casa, com as suas enormes janelas e o luminoso chão azul em pastilha de vidro. Espaços interiores esses que se encontravam recheados de objectos preciosos – incontáveis esculturas, quadros nas paredes, objectos de artesanato, jarras, candeeiros, móveis antigos e cadeiras de diferentes feitios, algumas das quais desenhadas pela própria arquitecta.
No entanto, estes espaços amplos – sem divisórias e delimitados por janelas – contrastam com uma outra parte da casa, que raramente é representada através de fotografias em monografias e sites de arquitectura. Para conseguir manter a casa a funcionar, limpa, arrumada e sempre pronta a acolher tanto os seus proprietários – uma mulher e um homem com vidas profissionais e sociais preenchidas – como as/os respectivas/os convidadas/os, a Casa de Vidro não poderia apenas ser uma casa de vidro. Um segundo volume, “escondido”, articula-se com o resto da casa através da cozinha, encerrando em si os quartos para as/os empregadas/os, um quarto de banho, uma pequena sala e uma lavandaria.
Este corpo invisível, onde se assegura o trabalho reproductivo, distancia-se do resto da casa não só através do pátio resultante da sua forma em U, como da sua própria linguagem arquitectónica. Enquanto que o corpo principal da casa, transparente, evoca a linguagem de uma arquitectura assumidamente moderna – sobre pilotis, com largos panos de vidro e amplas superfícies sem divisórias – esse outro corpo de serviços, muito mais opaco – densamente compartimentado e de vãos pequenos – aproxima-se mais, por sua vez, de uma certa imagem da “arquitectura popular”.
Assim, pese embora a Casa de Vidro desafie “o gosto arquitectural dominante das vizinhanças abastadas de São Paulo”, [6] a mesma não consegue desprender-se de uma predisposição tipológica característica da burguesia brasileira, que estabelece uma divisão tradicional de classe, género e raça, e que persiste até aos nossos dias. Ainda hoje são as mulheres de classes socioeconómicas mais baixas, sobretudo racializadas, que como verdadeiros “espectros” chegam desde as periferias para cozinhar, cuidar dos filhos e limpar as casas dos mais ricos; mas também os seus escritórios e lugares de lazer, que ficam nos centros das cidades –lugares onde se acumula o poder e se pratica activamente a exclusão das mesmas pessoas que garantem a sua manutenção. Como escreve Vergès, as “mulheres negras e mestiças podem circular pela cidade branca, mas como uma presença apagada.” [7] Um fenómeno que não se limita ao Brasil, mas que se reproduz em todos os nós de centralidade de um sistema onde a acumulação de capital provoca e inscreve no espaço essa mesma divisão do trabalho.
- Ibid., p.62.
- Françoise Vergès, “Política do abandono e desobediência radical”, Punkto, 27 Fevereiro 2020, in https://www.revistapunkto.com/2020/02/politica-do-abandono-e-desobediencia.html (versão digital, consultada dia 15 de Janeiro de 2021).
3
A senhora acha mais importante para um arquitecto: fazer uma revolução na arquitectura ou através da política? – São duas coisas completamente diferentes, mas que dependem uma da outra. A gente pode fazer uma revolução arquitetónica e ao mesmo tempo uma revolução política, ou vice-versa. Mas uma revolução política não é feita por uma pessoa só, e sim por um país inteiro, por um povo inteiro. Portanto, não existe essa escolha. Uma revolução isolada não tem significado nenhum. Você não pode fazer casas populares, ou casas coletivas, quando não existe um esquema sociopolítico e econômico atrás de tudo isso.
O SESC Pompeia, complexo de edifícios também conhecido como Fábrica da Pompeia, em São Paulo, é um dos maiores projectos concebidos por Lina Bo Bardi – idealizado no ano de 1977, mas completado apenas em 1986. Sobre o seu desenho, o de uma antiga fábrica cuja estrutura foi mantida e convertida em “centro de lazer”, Bo Bardi declarou que as suas intenções partiram sobretudo “do desejo de construir uma outra realidade.” [8] Neste projecto, escreve Olivia de Oliveira, a arquitecta “preserva a imagem da fábrica para logo subvertê-la: aqui o trabalho torna-se aliado do prazer e não mais o seu oposto. Retira do trabalho aquele carácter desagradável, repressivo, violento e penoso, para relacioná-lo à sensibilidade, à liberdade, à imaginação e à libido.” [9] Existe, assim, uma “correspondência com o pensamento situacionista, onde o jogo era entendido como representação concreta da luta por uma vida à medida do desejo, onde o elemento de competição, ligado a todas as outras manifestações de tensão entre os indivíduos, seria abolido.” [10] Esta ideia partiu da vontade de construir algo para a colectividade – tendo Lina Bo Bardi, inclusive, dedicado o seu projecto da Pompeia “aos jovens, às crianças, à terceira idade: todos juntos.” [11] O novo centro pretendia dessa forma possibilitar a convivência e a organização, “como fórmula infalível de produção cultural (sem a necessidade do uso do termo).” [12] Para além das salas para actividades recreativas, do auditório, da cantina, o conjunto de edifícios tinha como objectivo incentivar o desporto recreativo, “com uma piscina em forma de praia para as crianças pequenas ou para os que não sabem nadar” e com campos de desporto “com alturas mínimas abaixo das exigidas pelas federações de esporte e, portanto, inadequadas à competição. A ideia era reforçar e fomentar a recreação, o esporte ‘leve’. Assim, programa e projecto se fundiriam, indissociáveis, amalgamados.” [13]
Bo Bardi entendia a arquitectura como um serviço colectivo. Daí nunca ter revelado particular interesse na construção de casas privadas, para ricos. O seu projecto-de-arquitectura servia-lhe sobretudo para pensar essa vida e esses modos de fazer todas/os juntas/os. O SESC Pompeia é precisamente reconhecido como fruto da colaboração de um conjunto de pessoas, que trabalharam juntas para a sua construção – desde a arquitecta, que a coordenou, até ao operário que executou o detalhe da porta, afinou o desenho dos vãos de janela e esculpiu a sinalética que indica a cantina. Essa colectividade espelha os usos esperados para o edifício. E embora seja certo que um projecto sozinho não possa fazer a revolução, o SESC Pompeia aponta-nos certamente um caminho possível para imaginar uma vida colectiva, escapando aos caminhos de disputa e concorrência que o neoliberalismo nos obriga a percorrer. [14] Afinal, como defende Lina Bo Bardi, uma revolução política não é feita por uma pessoa só. E a este propósito, parece-nos ainda importante recuperar um dos aforismos que Luigi Snozzi escreveu: “com a arquitectura não se faz a revolução, mas a revolução não basta para fazer arquitectura. O ser humano precisa das duas.” [15]
- Lina Bo Bardi, “O projecto arquitectónico. Em Cidadela da Liberdade”, Lina por Escrito, São Paulo, Cosac Naify, 2009, pp.147-154.
- Olivia de Oliveira, “Repasses – A depredação material e espiritual da obra de Lina Bo Bardi”, Arquitextos, Janeiro 2006, in https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.068/387 (versão digital, consultada dia 15 de Janeiro de 2021).
- Ibid.
- Lina Bo Bardi, “O projecto arquitectónico. Em Cidadela da Liberdade”, op.cit., pp.147-154.
- Marcelo Ferraz, “Numa velha fábrica de tambores. Sesc Pompeia comemora 25 anos”, Minha cidade, Abril 2008, in https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/08.093/1897 (versão digital, consultada dia 15 de Janeiro de 2021).
- Ibid.
- Cf. Frédéric Lordon, “Garantia económica geral e produção cultural”, Punkto, 30 Junho 2021, in https://www.revistapunkto.com/2021/06/garantia-economica-geral-e-producao.html (versão digital, consultada dia 30 de Junho de 2021).
- Cf. Fabio Merlini & Luigi Snozzi, “Sobre o projecto: espectáculo, tempo e ideologia”, Punkto, 05 Janeiro 2021, in https://www.revistapunkto.com/2021/01/sobre-o-projecto-espectaculo-tempo-e.html (versão digital, consultada dia 06 de Junho de 2021).
4
Em jeito de conclusão, valerá a pena sublinhar que o objectivo deste texto não passa, obviamente, por desvalorizar a opressão e diminuição – tanto a nível material como subjectivo – a que historicamente têm sido sujeitas as mulheres: uma ‘comunidade’ que, embora socialmente diversa, convém ao capitalismo neoliberal unificar; nomeadamente, no campo da arquitectura. No entanto, acreditamos que a incorporação e o aparecimento de algumas mulheres em cargos importantes do sistema económico dominante da nossa época (seja nas direcções de bancos corruptos, de governos imperialistas, nas unidades militares, ou, no caso da arquitectura, no star system), não traz em si uma ruptura significativa no sistema vigente, capaz de despoletar a liberação de todas as outras mulheres – aquelas que são pobres, racializadas, relegadas às margens da bolha de privilégios.
Como demonstra a Casa de Vidro, que a arquitectura seja pensada por uma mulher não é garantia de projecto feminista. Pelo contrário, para que projectos-de-arquitectura feministas possam existir, é essencial pensar e agir resolutamente contra a postura individualista do estrelato, questionando as lógicas autorais que escreveram e pautam a história da disciplina para, no sentido contrário, procurar estratégias que não se deixem enquadrar, dominar e cooptar pelo capitalismo neoliberal dominante – tais como as que guiaram Lina Bo Bardi no projecto para Pompeia.
Desmantelar esse sistema mediático não passa, portanto, por alargar o espectro das personagens que participam nesse circo, mas antes por ser capaz de fugir do mesmo, para inventar outros caminhos possíveis. Toldado pelo idealismo, um certo “feminismo” liberal tende a reivindicar: “Queremos mais arquitectas a ganhar o Pritzker”. Ao que nós respondemos: que se acabe de uma vez por todas com o Pritzker e com as bienais, com todos esses prémios e feiras de vaidades que servem sobretudo para minar o espírito de colectividade e alimentar o mito da meritocracia, impedindo-nos de ver com lucidez, para lá das contradições, os verdadeiros antagonismos que caracterizam o processo de produção da arquitectura. Pois só a partir da superação desses antagonismos se poderá começar a pensar uma vida em conjunto. E só então, ser arquitecta poderá significar algo diferente de ser arquitecto.