Desde há um par de anos, na companhia dos camaradas de viagem Francisco Ascensão e Catarina Costa, temos cultivado um interesse particular pelo SAAL: serviço experimental de resposta às carências habitacionais das classes desprivilegiadas, cuja breve existência acompanhou o período revolucionário, relativamente curto mas particularmente intenso, vivido em Portugal entre 1974 e 1975. Particular não porque é respectivo a uma esfera privada de interesses, mas por ter como base uma perspectiva menos historiográfica e mais ‘psicogeográfica’ sobre aquilo que às suas custas foi possível construir-se.
Na teoria Letrista, mais tarde desenvolvida pelos Situacionistas, “a psicogeografia propor-se-ia ao estudo das leis exactas e dos efeitos precisos de um meio geográfico, conscientemente organizado ou não, actuando directamente sobre o comportamento afectivo dos indivíduos.” Por esse motivo, “o adjectivo psicogeográfico, conservando-se agradavelmente vago, pode aplicar-se aos dados estabelecidos por este tipo de investigação, aos resultados da sua influência nos sentimentos humanos, e mesmo de forma mais geral a toda a situação ou conduta que parecem resultar desse mesmo espírito de descoberta.” Uma abordagem de tal natureza não orienta o seu foco apenas para os prospectos, em certa medida utópicos, ou para os vestígios materiais, dispersos e manifestamente insuficientes, que resultaram à época das conquistas próprias da Revolução. Antes, lança-o com particular apreço sobre todas as outras camadas que desde aí lhes foram sendo sobrepostas por quem destes se apropriou e nestes encontrou formas de se expressar.
Consciente ou inconscientemente, esta tem por base uma série de derivas espontâneas, que nos permitem olhar para o que sempre ali esteve, mas nunca observámos atentamente. Aqui, dérive define-se “como técnica de passagem apressada através de variados ambientes” da cidade, durante a qual quem se entrega “renuncia, por uma duração mais ou menos longa, às razões do deslocar-se e do agir que conhecem geralmente, às relações, aos trabalhos e aos lazeres que lhes são próprios, para se entregar às solicitações do terreno e dos encontros que lhe correspondem.” No caso do SAAL, isto significa navegar sem plano, entre fragmentos de uma experiência que cruzou arquitectura e democracia, à procura de quem nos explique a importância que os bairros têm nas suas vidas e de que modo são ainda hoje participantes activos da sua construção. Procurando aprender (d)o modo como estes se vão fazendo lugares, com o propósito de pensar não só a política e o mundo de então, como sobretudo a política e os mundos de hoje, de amanhã.
O primeiro bairro que visitamos nestes moldes, imediatamente antes do célebre bairro da Meia-Praia, foi em Quarteira, cidade do sul de Portugal (Algarve) que se tornou na segunda metade do século XX uma importante colónia turística. Durante anos, passamos férias literalmente do outro lado da rua, sem que durante esse tempo nos tivéssemos apercebido que estávamos junto a uma das maiores operações SAAL realizadas. Construída para acolher pescadores locais, mas também retornados das ex-colónias, a sua escala é bastante significativa quando comparada com outras realizações que conhecíamos da cidade do Porto, incluindo por exemplo uma escola e outras infra-estruturas colectivas.
Agradável surpresa é a intensidade com que a arquitectura deste bairro foi transformada pelos seus habitantes. Tema recorrente entre quem estuda este período é o modo como a participação teria caracterizado um processo desenvolvido entre militantes, moradores, estudantes e técnicos de diversas áreas. Porém, quando vemos o modo como certas arquitecturas se petrificam, ocorre pensar que até em processos ‘participados’ o planeamento significa amiúde “a participação em algo em que é impossível participar.” Pelo contrário, como escrevemos antes, cada acrescento ou ornamento sobrepostos à arquitectura originalmente despojada do bairro de Quarteira funciona como um espelho que reflecte para a cidade as necessidades, os gostos e os desejos mais profundos dos seus habitantes. A vegetação cuidada que organiza os espaços exteriores colectivos, demonstra a vontade dos moradores em fazer sua a cidade. E as molduras das janelas, as cores vivas, os balaústres, as chaminés, as cantarias expressam em voz alta um sentido espontâneo de pertença a uma comunidade e a uma história mais amplas, demonstrando que para além de uma casa digna, a possibilidade de se exprimirem foi uma das principais conquistas da revolução.
Num esforço para dar corpo à teoria do Urbanismo Unitário, Constant imaginava para os Novos Babilónios uma urbanização extensiva do planeta, pairando sobre as ruínas do mundo existente para construir a cidade do espaço e do tempo livres. Numa cacofonia que intersectava elementos móveis, flexíveis, e planos coloridos compondo uma mega-estrutura emancipatória, a sua visão, não sem razão, foi relegada ao utopismo. Ao olharmos para o bairro da Quarteira, contudo, essa cidade em transformação, construída pelas mais profundas necessidades e pelas vontades dos seus próprios habitantes, encontra alguma tracção na realidade e não parece tão desmedida.
Em boa verdade histórica, a teoria Situacionista teve pouca relevância (se alguma, de todo) para a Revolução Portuguesa. Mas o que estas derivas nos ensinam é que no ponto da história em que nos encontramos agora talvez já não seja possível, ou sequer desejável, sonhar com outras cidades para outras formas de vida. O que é desejável, contudo, para não dizer indispensável, é encontrar a força de inventar outras formas de viver aquelas que existem. Como nos demostra a história, a capacidade para re-construir esses lugares não nos chegará de uma qualquer utopia, mas da capacidade de romper os cercos. Os seus gérmens talvez já sejam visíveis, se estivermos dispostos a procurá-los, nos esforços para construir um espaço comum que se vão realizando, aqui e ali, entre os despojos do capitalismo tardio.